O que está em jogo no encontro entre Francisco e Erdogan

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18 Janeiro 2018

Ainda que haja muitas coisas admiráveis no Papa Francisco, uma característica com certeza é sua capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo. Neste momento ele está no Chile, tentando, entre outros objetivos, reparar os danos dos escândalos de abuso sexual clerical no país latino-americano, e ainda conseguiu estar diplomaticamente ativo no Oriente Médio na terça-feira.

O comentário é de John L. Allen Jr., publicado por Crux, 17-01-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.

Após relatos na imprensa turca, o Vaticano confirmou, na terça-feira, que, no dia 5 de fevereiro, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan encontrará Francisco na biblioteca do Palácio Apostólico, onde o Papa costuma receber chefes de Estado.

A reunião foi agendada após um telefonema entre Erdogan e Francisco, no dia 29 de dezembro, no qual discutiram as consequências da decisão do dia 6 de dezembro do presidente dos EUA, Donald Trump, de reconhecer Jerusalém como a capital de Israel e transferir para lá a embaixada estadunidense de Tel Aviv.

Erdogan e Francisco criticaram a ação, reafirmando o apoio ao status quo em Jerusalém. De acordo com o mesmo relatório, o líder turco e o Papa Francisco também discutirão questões de migração e dos conflitos na Síria e no Iraque.

À primeira vista, parece que o significado do encontro de 5 de fevereiro tem quatro níveis.

O primeiro é a própria questão de Jerusalém. Trump tem uma certa fama anunciar políticas audaciosas que levam um tempo considerável para serem implementadas e que podem ser desaceleradas ou modificadas quando a poeira baixar. O Secretário de Estado dos EUA, Rex Tillerson, afirmou que a ação da embaixada "não é algo que vai acontecer este ano, provavelmente nem no próximo". Portanto, talvez Erdogan e Francisco esperem que ainda haja tempo hábil para intervir.

Essa esperança pode ser impulsionada pelo fato de que Trump parece gostar de Erdogan. Quando o líder turco visitou Washington em setembro, Trump disse que ele seria "um amigo” e acrescentou que, apesar dos desafios que Erdogan enfrenta, como a crescente crítica à sua linha autoritária, ele “tira o chapéu” para ele.

Em segundo lugar, o encontro é importante porque de certa forma fecha uma baixa nas relações entre Turquia e Vaticano que começou em 2015, quando Francisco usou publicamente a palavra "genocídio" para descrever o massacre de armênios por turcos otomanos na Primeira Guerra Mundial, intensificando-se ao fazer o mesmo em sua viagem para a Armênia em 2016.

A Turquia nega a alegação de que houve um genocídio e insiste que o que aconteceu com os armênios foi parte de uma série de assassinatos indiscriminados durante a guerra. Em 2015, Erdogan respondeu aos comentários de Francisco com rispidez, aconselhando-o "a não repetir o mesmo erro". Um ministro do governo turco acusou Francisco de ter "uma mentalidade da época das Cruzadas" em 2016.

Agora, no entanto, quaisquer rusgas que ainda existiam parecem ter desaparecido, e o encontro do dia 5 de fevereiro comprova que o relacionamento está voltando aos eixos.

Em terceiro lugar, o encontro é importante porque, apesar de ambos os lados certamente terem algo a ganhar, também têm algo a perder.

Para Francisco, sua autoridade moral no mundo todo baseia-se, em partes, na sua reputação por apoiar os oprimidos e marginalizados. Se ele for considerado muito à vontade com uma figura que é considerada em alguns cantos como um "ditador" com um histórico duvidoso sobre os direitos humanos, o poder de mobilizar apoio moral para as questões com que se preocupa em geral pode ser afetado.

Por outro lado, também há muito em jogo para Francisco e o Vaticano em relação ao diálogo mais amplo com os Estados islâmicos, e os conselheiros do pontífice tendem a dizer a ele que manter boas relações com Erdogan pode compensar de formas que hoje não se pode prever.

Quanto a Erdogan, ele já sabe que Francisco está disposto a investir parte do seu capital político com a Turquia por algo que considere importante, como o reconhecimento do genocídio armênio.

O líder turco vai a Roma sabendo muito bem que o preço de fazer negócios internacionais, se o Papa quiser, pode ser a pressão a respeito de questões internamente impopulares, como o destino da comunidade ortodoxa oriental da Turquia centrada no Patriarcado de Constantinopla, cuja dimenso vem diminuindo.

Um exemplo é o famoso seminário de Halki, em Istambul, antiga Constantinopla, que permanece fechado por determinação do governo turco desde 1971, apesar de décadas de solicitações do patriarcado e de seus aliados internacionais para permitir sua reabertura. O Papa Francisco é particularmente próximo ao Patriarca Bartolomeu de Constantinopla, e Erdogan sabe que, ao se envolver com o Papa, corre o risco de enfrentar problemas nessa frente.

Além disso, supondo que Francisco e Erdogan realmente discutam sobre a Síria e o Iraque, eles podem ter perspectivas ligeiramente diferentes.

Até agora, o principal interesse de Erdogan parece ser proteger os interesses muçulmanos sunitas nas duas nações, pelo menos na medida em que esses sunitas não sejam curdos ameaçando fatiar partes do território turco. Francisco e o Vaticano, por outro lado, trabalham arduamente para manter boas relações com o Xiismo e querem manter uma relação amistosa com os curdos, ao menos porque os curdos controlam partes do Iraque que populações cristãs significativas costumam chamar de casa, como as planícies de Nínive.

Por fim, em quarto lugar, o diálogo em andamento entre Francisco e Erdogan é parte de uma transição histórica mais ampla no Vaticano, que é a mudança do Judaísmo para o Islã como o relacionamento inter-religioso paradigmático da Igreja.

Em grande parte do período após o Concílio Vaticano II (1962-65), de longe o diálogo mais importante da Igreja com outras religiões era com o judaísmo, e a linguagem, os métodos e a psicologia que marcou aquele diálogo definiu o tom de todos os outros.

No entanto, a partir do 11 de setembro, o Vaticano começou prestar mais atenção para a relação com o Islã como tônica, em grande parte porque parecia ter um impacto mais direto sobre o mundo - não apenas na Terra Santa, mas em vários outros locais. Entre outras coisas, isso sinalizou uma mudança de um diálogo mais teológico, entre acadêmicos, para um diálogo mais político e diplomático, focado não apenas na doutrina, mas na arte de governar.

Enquanto Francisco claramente se preocupa com a relação com o judaísmo, ele também investiu na construção de pontes com o Islã, reconhecendo que as implicações para a paz e a segurança global são enormes.

Assim, quando se encontrarem no dia 5 de fevereiro, ambos Francisco e Erdogan estarão apostando alto. Seja qual for o resultado, será mais um capítulo na história do Papa ativista, determinado a ir para o tudo ou nada quando a pressão pela paz está em jogo.

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