A revanche das periferias. Até a Civiltà Cattolica se enfurece com o cardeal Sarah

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20 Novembro 2017

Após a repreensão pública de Francisco ao cardeal Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, não há mais nenhuma dúvida sobre as verdadeiras intenções do papa em matéria de traduções nas línguas modernas dos textos litúrgicos de rito latino. Esta tarefa será inteiramente delegada às Igrejas nacionais e a aprovação do Vaticano será reduzida a pura formalidade.

A reportagem é de Sandro Magister, publicada por Settimo Cielo, 18-11-2017. A tradução é de André Langer.

Mas para aumentar a dose – somada ao sarcasmo em relação aos supostos retrógrados – chegou pontualmente La Civiltà Cattolica, considerada há algum tempo como a "house organ" de Santa Marta.

Em sua última edição, a histórica revista dos jesuítas dirigida pelo padre Antonio Spadaro dedicou seu artigo de abertura justamente à "restituição" às conferências episcopais nacionais da plena competência na tradução dos livros litúrgicos.

A tese do artigo da La Civiltà Cattolica, com efeito, é que esta faculdade já tinha sido devolvida às Igrejas nacionais em 1969, a partir de uma instrução – na verdade a carta de um cardeal – que tem o título Comme le Prévoit, mas que rapidamente foi dada como morta "por razões ideológicas", quando os adversários da reforma litúrgica começaram a prevalecer. Até que chegou o Papa Francisco para reviver a carta e, consequentemente, para marcar a revanche das "periferias" sobre o centralismo do Vaticano.

Um centralismo cujo último epígono é o cardeal Sarah, com Francisco que "se viu forçado a intervir" para neutralizar suas pretensões.

Naturalmente, esta tese da La Civiltà Cattolica pode ser atribuída pessoalmente ao Papa Francisco, dada a relação muito estreita entre uma e o outro. Isso corresponde perfeitamente ao seu projeto geral de fazer a Igreja evoluir de monolítica a federada, com cada uma das Igrejas nacionais dotada de ampla autonomia, "incluindo alguma autêntica autoridade doutrinal" (Evangelii Gaudium n. 32).

O autor do artigo é o jesuíta Cesare Giraudo, 76 anos, professor emérito de liturgia e teologia no Pontifício Instituto Oriental de Roma.

Seguem as passagens centrais do seu artigo.

*

Magnum Principium e a inculturação litúrgica, por Cesar Giraudo S.J.

É realmente um "grande princípio" que foi proclamado pela Constituição Sacrosanctum Concilium do Concílio Vaticano II no artigo 36, reconhecendo às assembleias litúrgicas individuais o direito de se dirigir a Deus em sua própria língua. [...]

Com a criação do "Consilium ad exsequendam Constitutionem de sacra Liturgia", instituído por Paulo VI com o Motu Proprio Sacram Liturgiam, de 25 de janeiro de 1964, colocou-se em movimento a reforma litúrgica e deu-se início a um percurso marcado pelas primeiras grandes instruções: Inter Oecumenici (1964), Tres abhinc annos (1967), Comme le Prévoit (1969) e Liturgicæ Instaurationes (1970). Embora mais tarde, por razões ideológicas, a instrução Comme le Prévoit, isto é, a carta do cardeal Lercaro aos presidentes das Conferências Episcopais sobre a tradução dos textos litúrgicos, não fosse contada entre as grandes instruções, ela permanece como tal e como tal deve ser entendida. [...]

Mais duas instruções foram acrescentadas posteriormente, elaboradas pela Congregação para o Culto Divino: Varietates Legitimæ (1994) e Liturgiam Authenticam (2001).

É, sobretudo, essa última que foi sistematicamente apresentada como referência normativa – como afirmam os subtítulos – não apenas "para o uso das línguas vernáculas na edição dos livros da liturgia romana", mas também "para a correta aplicação da Constituição sobre a Sagrada Liturgia". [...]

O que dizer sobre a instrução Liturgiam Authenticam? [...] Obviamente, a pessoa mais indicada para avaliar as diretrizes nela contidas é o cultor da liturgia, da teologia e da pastoral. [...]

O liturgista não esconde sua perplexidade quando percebe, por exemplo, que a noção de "reforma litúrgica" repousa, em toda a instrução, sobre seis parcimoniosas recorrências da expressão "instituição litúrgica". E ele se pergunta: por que olhar com tanto pudor um acontecimento eclesial de tão grandes proporções que foi a reforma litúrgica desejada pelo Concílio Vaticano II e tão prudentemente administrado pessoalmente por Paulo VI? E por que insistir tanto, em relação à também necessária verificação, em uma centralização que corre o risco de lesar o papel das conferências episcopais e de mortificar a dignidade das Igrejas locais? [...]

Ao ler e reler a Liturgiam Authenticam, sem dúvida mais de uma pessoa se perguntou se realmente chegamos ao fim da gestão das línguas vernáculas na edição dos livros litúrgicos.

Mas o recente Motu Proprio Magnum Principium ofereceu uma resposta importante e clara. [...] O Papa Francisco estimou que deveria intervir para acelerar procedimentos que uma polarização excessiva sobre a noção de "recognitio" tinha levado a um ponto de estagnação, mas sobretudo para devolver às conferências episcopais territoriais essas competências em questões litúrgicas das quais tinham sido privadas indevidamente. [...]

Enquanto antes a Congregação tinha competência sobre a "recognitio" das traduções litúrgicas, previamente elaboradas pelas conferências episcopais, que passava pela peneira implacável da Liturgiam Authenticam, de agora em diante todas as competências sobre as traduções são restituídas às conferências episcopais, que se tornam os fiadores autorizados e únicos da sua fidelidade. [...]

*

Até aqui tudo parecia claro, mas o palco se reabre novamente. Entre os dias 12 e 14 de outubro, em vários órgãos de imprensa, primeiramente em italiano e, em seguida, na versão original francesa, aparece uma longa carta intitulada ‘Humble contribution pour une meilleure et juste compréhension du Motu Proprio ‘Magnum principium’, que o cardeal Robert Sarah tinha dirigido ao Pontífice no dia 1º de outubro. [...]

Diante desta interpretação, o Pontífice viu-se obrigado a intervir – de forma que os observadores concordam em definir como "inédita" –, dirigindo uma carta pessoal ao seu eminente interlocutor e rogando-lhe para que a transmita aos sítios de internet onde o "Commentaire" tinha sido publicado, e "a todas as conferências episcopais, aos membros e aos conselheiros deste dicastério". O cumprimento deste pedido fez com que a carta se tornasse de domínio público. [...]

Ao restituir às conferências episcopais a plena competência sobre a tradução dos livros litúrgicos, o Motu Proprio Magnum Principium tentou reafirmar o princípio da subsidiariedade, com base no qual a instância superior não deve se sobrepor ou substituir a instância inferior no exercício dos papéis legitimamente reconhecidos. Além disso, quem melhor que as conferências episcopais, em cada uma das quais há uma multiplicidade de especialistas que elaboram as traduções, pode julgar a conformidade das mesmas com os textos originais? [...]

Por esta razão, estamos agradecidos ao Motu Proprio que novamente deu voz, indiretamente, à Instrução Comme le Prévoit, com a qual neste ponto as diretrizes da Liturgiam Authenticam devem ser harmonizadas e integradas. [...]

Outro motivo de gratidão é o fato de que o Motu Proprio coloca novamente em movimento a inculturação litúrgica, em particular aquela que, em sintonia com os Padres da Igreja, o Vaticano II e o primeiro Sínodo das Igrejas da África e Madagascar (1994), vai em busca das "sementes do Verbo" no patrimônio pré-cristão das jovens Igrejas.

Em consonância com o tema da inculturação – e, consequentemente, com a tradução dos textos, intimamente ligados a ele – podemos concluir com uma citação de Santo Ambrósio, que, em defesa de práticas próprias da Igreja de Milão, disse: "In omnibus cupio sequi Ecclesiam Romanam, sed tamen et nos hominis sensum habemus!" [Em tudo eu quero seguir a Igreja de Roma, mas também temos um sentido do homem].

Aplicando e adaptando a elas mesmas essa legítima e obrigatória reivindicação de direitos, os representantes das jovens Igrejas podem dizer hoje: "Nós também queremos seguir a Igreja romana em tudo, mas também temos o sentido do homem! Permitam que nós mesmos façamos a tradução das nossas orações litúrgicas, em harmonia com os dons da graça que o Verbo Semeador desde sempre espalhou nos sulcos férteis da nossa terra".

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