Viva o pai que desce do pedestal patriarcal

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18 Julho 2017

A indagação que esse pequeno livro propõe, sob um novo ponto de vista, busca descobrir ao que resta do pai nessa nossa época que se decreta sua evaporação. Esta era a pergunta que me interessava, não apenas como psicanalista, mas também como pai: o que resta do pai nesse momento em que ocorre a sua dissolução? Nesse momento em que sua autoridade e sua força normativa parecem ter-se irreversivelmente esgotado? Temos que jogar fora tudo do pai? Temos que dizer chega de pais? Constatar seu estado de coma sem esperança? O pai é um ferro velho da cultura patriarcal que deve ser arquivado sem nenhuma saudade?

O comentário é de Massimo Recalcati, autor do livro Cosa resta del Padre. La paternità nell’epoca ipermoderna,(O que sobra do Pai. A paternidade na época hipermoderna, em tradução livre), em artigo publicado por Repubblica, 14-07-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.

O caráter neo libertino do nosso tempo parece não ter dúvidas a respeito: trata-se de extinguir sem demora o pai como limite insuportável para a nossa liberdade e a nossa vontade ilimitada de prazer. O nosso tempo é um tempo intrinsecamente parricida. Se a figura do pai é, acima de tudo, aquela figura que preserva o sentido do impossível, o mandamento social hoje dominante proclama, contra cada pai, que tudo é possível, proclama uma liberdade que rejeita toda experiência do limite e da falta.

Frente a essa derivação que não envolve, evidentemente, apenas a psicanálise, mas nossa sociedade inteira, a minha perspectiva queria ser diferente. Eu não queria me juntar ao coro dos que celebram a morte do pai - a nudez do Rei é, aliás, uma evidência diante dos olhos de todos - nem estar entre aqueles que lamentam nostalgicamente sua ausência - não há nada para os meus olhos mais odioso que o paternalismo e os seus derivados -, mas tentar repensar radicalmente a função paterna. Como? O que, exatamente, resta do pai? Trata-se de repensar a sua identidade não mais do alto da glória do seu comando infalível ou de seu poder, mas, como diria o jovem Marx da dialética de Hegel "a partir dos seus pés".

Esta é a verdadeira aposta desse pequeno e bem sucedido livro: repensar o pai a partir dos seus pés. Isto significa, antes de tudo, não renunciar ao pai, mas evitar sua colocação na posição vertical do Ideal, do Patrão, do guia infalível, da autoridade que tem a palavra final sobre o sentido da vida e da morte, do bem e do mal, do certo e do errado. Significa corrigir a representação patriarcal do pai. Qual é o centro dessa representação ideológica? O pai com um bigode ou barba, viril, austero, macho, marido de uma mulher que vive no recôndito do lar, o pai depositário da palavra que fecha todos os discursos, o símbolo de uma Lei que esmaga o desejo nutrindo-se de seu poder.

Esta é a versão do pai do patriarcado. Pois bem, como sabemos, esse pai evaporou. Mas esse pai - o pai do "olhar severo" e da voz grossa da tradição patriarcal – esgota o ser do pai enquanto tal? O seu crepúsculo não nos permite talvez entender, justamente no momento do seu fim, da sua extinção, o verdadeiro estatuto do pai e da sua função? O pai que resta ao crepúsculo do pai do patriarcado é o pai do dom da palavra, e não do seu sequestro, é o símbolo de uma Lei que não se realiza na proibição e na interdição, mas que sabe como abrir a vida à força do desejo; é aquela figura que sabe como gerar um respeito que não passa pelo temor, mas que se gera pelo testemunho. Pensar o pai a partir dos pés significa considerar o pai como aquele que traz a palavra e não como aquele que a reivindica como sua propriedade, como alguém que sabe abrir e não fechar os discursos, como aquele que sabe, através das próprias ações, colocar-se não no papel de modelo exemplar, mas como testemunha. Do quê? Do fato que a vida pode ter um sentido, um esplendor, pode ser subtraída à tentação da destruição. No que resta do pai, a partir dos seus pés, de sua queda do pedestal patriarcal, está custodiada, na realidade, a verdadeira função do pai: humanizar a Lei, libertá-la da violência cega da Lei, unir e não opor a Lei ao desejo, como nos lembra Lacan.

Nesse sentido, Cosa resta del padre? é um livro cristão, no sentido mais radical do termo. Enxerga no que resta do pai - no pai que resiste - a emancipação da Lei do rosto sacrificial, patibular, sádico da Lei. Como Jesus afirma ter vindo para cumprir a Lei - a da tradição judaica – libertando-a de sua intrínseca violência, do caráter meramente vingativo da Lei, através do poder do amor, da mesma forma, o pai testemunho de quem trato nesse livro constitui uma tentativa de levar a Lei do pai para o seu cumprimento, ou seja, libertá-la do uso apenas normativo-repressivo da própria Lei. O pai que fala: "Não!" – o pai da interdição - é corrigido pela figura do pai como doador, capaz de amar e não oprimir a liberdade secreta do filho, é corrigido pela figura do pai do "Sim!". Este "Sim!" não anula o "Não!", mas traz a cumprimento de maneira cristã, justamente, a natureza simbólica da interdição revelando-a como uma doação: a doação da possibilidade do desejo de uma geração para outra.

Essa é a lição que Cosa resta del padre? recolhe a partir de alguns testemunhos-chave e contemporâneos dessa figura do pai testemunha: Lacan em primeiro lugar, mas também A Estada de Cormac McCarthy, Patrimônio de Philip Roth e um recente filme de Clint Eastwood. Que lição? A da paternidade- no momento do declínio da sua representação patriarcal - não pode ser reduzida a um evento da biologia, do sangue, da estirpe e do sexo do pai. Os pais são, nesse sentido, sempre múltiplos e irredutíveis aos acontecimentos do enredo familiar como, para citar apenas um exemplo, acontece com o jovem protagonista Thao, juntamente com o soturno veterano da guerra Walt, de Gran Torino de Eastwood. O pai não coincide com o esperma: existe pai apenas quando há a transmissão de uma herança que tem a capacidade de humanizar a Lei, existe pai apenas quando há o testemunho de que a vida pode ser desejada desde o seu fim, existe pai só quando é oferecida ao filho uma versão única da força do desejo, existe pai, como afirma Lacan, quando a Lei consegue se encarnar no desejo.

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