Em nome do pai e do filho

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01 Julho 2017

“Na Bíblia não há a atuação da Moira, o destino não decide. Não acontece o que homens e mulheres querem ou decidem, e ainda assim nada acontece independentemente de sua vontade ou das suas decisões”, constata Agnes Heller, filósofa húngara aluna de Lukács, em artigo publicado por La Repubblica, 25-06-2017. A tradução é de Luisa Rabolini

Eis o artigo.

A famosa teoria de Freud sobre a formação da imagem de um único Deus não é confirmada pelos textos tradicionais. Como sabemos, Freud sugere que no início dos tempos os irmãos teriam matado o pai e que, para expiar a culpa, passaram a adorá-lo como Deus. Mas nos textos tradicionais, ao contrário, é o pai que mata os filhos, ou o filho os seus irmãos.

A mitologia grega começa com a história do deus-pai (Cronos) que devora seus próprios filhos para evitar o nascimento do tempo, da sucessão, da História em um mundo de identidade atemporal. A Bíblia (que não é um mito, mas uma série de histórias humanas e lendas) substitui os símbolos do mito com parábolas de viés narrativo. No lugar de Cronos, portanto, encontramos o faraó egípcio que, para evitar o desenrolar-se da História, ordena a morte de todos os recém-nascidos judeus do sexo masculino. A história se repetiria quase dois mil anos mais tarde, quando Herodes ordena o massacre de todos os recém-nascidos da Judeia. Em ambos os casos, Deus interveio por meio de anjos e dos seus ajudantes humanos. O Deus de Israel é, portanto, o Deus da História, o Deus do tempo, do futuro. Ele está ao lado dos filhos.

Mesmo a história do aqedáh (o sacrifício de Isaque por seu pai Abraão) pode ser lida da mesma maneira. Como fez, por exemplo, Derrida, interpretando-a como um modelo. Desde as origens da história, os pais sempre sacrificaram os filhos, explica Derrida. Enviaram seus filhos para a guerra, para lutar e morrer em defesa do poder, da riqueza, da posição e da dignidade dos pais.

A interpretação de Derrida não carece de fundamento. Antes de Isaque, Abraão teve outro filho, Ismael, filho da concubina Agar. A partir das Escrituras sabemos que Abraão enviou seu filho para morrer. Não o matou com suas próprias mãos, mas o expôs, sem água nem alimentos, às forças da natureza. Mas o Todo-Poderoso, o Deus da História, já estava lá, do lado do futuro, do filho. Salvou Ismael com a ajuda do anjo, para o futuro.

Podemos também supor que o próprio Abraão tivesse interpretado mal a voz de Deus quando Lhe ordenou que sacrificasse o filho. Efetivamente decidiu sacrificar Isaque, o filho amado, para parar o tempo. No entanto, Deus, o Deus da História, também salvou essa criança. A eternidade precisava permanecer prerrogativa de Deus, enquanto às criaturas cabiam o tempo e a história, e isso deveria ter sido o destino do homem. O aqedáh também pode ser interpretado por essa ótica.

Sabemos, sempre a partir da Bíblia, que Isaque e Ismael sepultaram juntos o pai. A vida dos filhos é a morte de seus pais. Em tal perspectiva, nessa perspectiva simbólica, Freud talvez tenha tido razão.

Não muito tempo depois, encontramos na Bíblia Jacó, o preferido da mãe, que enganou o pai e o irmão, mas continuou a ser o preferido de Deus. O próprio Jacó, que foi pai de doze filhos e uma filha, teve um filho predileto sobre os demais. Húbris, diriam os gregos, os deuses iriam puni-lo por isso. Mas o Deus de Israel pensava diversamente. Primeiro, porque Ele também tinha a tendência a ter prediletos, e ao mesmo tempo corrigia os erros da natureza. Em segundo lugar, porque, sendo Deus da História, mesmo nessa ocasião se manteve do lado do futuro, do amor e do final feliz.

O amor do pai, seja do pai terreno como do pai celeste, era correspondido. Sem a memória do pai terreno e de sua relação pessoal com o Pai celeste, José, o governador do Egito, teria sido totalmente assimilado no mundo de seu sucesso. Nesse caso, a corrente da História teria sido rompida. O amor de José pelo pai terreno e sua relação íntima e pessoal com o Pai celeste mostram-se mais fortes inclusive que sua autoindulgência. No momento em que se revela aos irmãos, a primeira pergunta que vai dirigir a eles será: "Como está o vosso pai?". Ele só teria que vir, vir para ele, e ele (José), tomaria conta do pai e de seu povo. A relação pai-filho foi invertida, José torna-se o pai de Jacó.

(...) Agora vou me afastar das histórias fundadoras da pré-história e continuar com a história política, analisando os conflitos bíblicos entre pais e filhos. Não há mais necessidade de intervenção divina ou dos anjos, não precisa mais dar um impulso à história. Chegamos a um mundo totalmente humano, um mundo de livres escolhas. Pais e filhos, de agora em diante, escolherão lutar uns contra os outros, ou não. Assim, chegamos ao primeiro e segundo livro de Samuel.

Samuel poderia não ter um complexo paterno, pois seu pai tinha desempenhado um papel puramente biológico em sua vida, ou seja, tinha apenas se limitado a concebê-lo. Sua mãe, Ana, o tinha oferecido a Deus, mesmo antes de tê-lo em seu colo. Após ter desmamado o bebê, Ana o enviou para a casa de Eli, o sumo sacerdote.

Já avisei que Deus gostava de corrigir a natureza constantemente, especialmente a genética, e que muitas vezes escolhia os seus favoritos livremente, contra os caprichos do hábito natural. Assim como já havia escolhido Jacó e não Esaú, o primogênito. O mesmo aconteceu no caso de Samuel. Os filhos de Eli, herdeiros naturais do mais alto sacerdócio, deixaram-se corromper e roubaram os cordeiros sacrificiais. Não tem problema! Naquela casa vivia o menino Samuel, que queria ser visto (por Deus) como o filho espiritual de Eli contra os três filhos dos seus lombos. O filho espiritual, assim decidiu Deus, seguiria Eli em seu ofício sagrado.

Como sabemos pela Bíblia, Samuel fez mais do que isso. De fato, foi ele que inventou o "judaísmo" e foi ele que consagrou os primeiros reis de Israel, Saul e Davi, e talvez também tenha sido ele que testemunhou o primeiro conflito 'secular', meramente terreno, entre pai e filho.

Nem sei quantos psicólogos lapidaram suas habilidades estudando a personalidade e as atividades do rei Saul. O diagnóstico bíblico de seus sintomas é, no entanto, claro. O rei Saul era maníaco-depressivo. O jovem Davi foi convidado para a corte para aliviar, com sua harpa, o sofrimento do rei da melancolia e do desamparo geral. Após os sucessos iniciais de Davi, Saul tornou-se não só irracionalmente ciumento do jovem, mas também incapaz de controlar a própria raiva. Seus paroxismos se repetiam, ele não conseguia afastar a ideia fixa de que Davi estava prestes a matá-lo, embora por duas vezes mostraram-lhe que suas suspeitas eram infundadas. A Bíblia também descreve em duas ocasiões os seus ataques: por um enfraquecimento nos quadris, de repente caiu no chão, tornando-se incapaz de comer e beber. Depois, após um acesso de raiva, Saul improvisamente desarmou Davi, chamou-o de seu filho, pediu-lhe perdão, reconhecendo o seu pecado. Para em seguida voltar para persegui-lo loucamente... Nem mesmo ouviu os argumentos e as súplicas de seu filho Jônatas. Segundo as Escrituras, Saul era obcecado por um "espírito maligno". Em suma, em Saul estavam presentes todas as condições psicológicas para que se tornasse um déspota oriental, mas ainda assim havia também outras que o impediram de sê-lo. Uma dessas, talvez, tenha sido a resistência de Samuel.

A narrativa aqui nos fala de uma nova e muito específica relação pai/filho entre Saul e seu filho mais velho Jônatas. Na Bíblia, onde todos podem pecar pelo menos uma vez sem perder a bênção divina - uma vez que somos todos mortais, humanos - Jônatas é o único mortal em toda a Bíblia hebraica que não peca ou não erra nem uma vez sequer. E não só em relação aos critérios éticos de seu mundo e de sua época, mas também, se assim posso dizer, quando comparado com a moralidade universal. Jônatas ama Davi, sabe que Davi é justo com seu pai, e fala ao seu pai que está errado. Salva Davi da ira paterna. E ainda assim ele ama seu pai, está perto dele, porque sabe que Saul está doente, e que deve salvar seu pai, antes de tudo, de si próprio. No final, morre em batalha junto com ele.

Há uma coisa que Davi precisou aprender com a vida de Saul. Qualquer um pode pecar, porque somos todos humanos, mesmo que não seja suficiente dizer: "Eu pequei, eu estava errado, perdoe-me”. Foi uma lição valiosa, pois o próprio Davi desenvolveu uma tendência às mudanças repentinas de humor. Já poderíamos ter percebido isso no primeiro livro de Samuel, no qual muitas vezes chora, lamenta-se, geme e pode tornar-se "sentimental" enquanto chora, da mesma forma que pode entregar-se a uma alegria incontrolável, como quando dança seminu ao redor da Arca da Aliança .

Quando Davi lamenta Saul e Jônatas, a sua tristeza torna-se poesia (de acordo com estudos bíblicos, este poema só seria escrito no VII a.C.): Tua glória, ó Israel, foi morta sobre os teus altos! Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas! Muito querido me eras! Maravilhoso me era o teu amor, ultrapassando o amor das mulheres.

Enquanto cantava em louvor de Jônatas, Davi ainda não sabia que um de seus filhos favoritos não teria permanecido tão leal quanto Jônatas tinha sido com Saul.

Davi gerou muitos filhos com suas várias esposas e concubinas. Conhecemos seus nomes, mas não sabemos quase nada sobre a relação que tiveram com o pai nem daquela que David teve com eles. Ele não nutria nenhum sentimento especial, nem mesmo por Salomão. Não na Bíblia. O fato que Salomão tinha se tornado o herdeiro de Davi não é devido à específica relação com o seu pai, mas, é claro, à enérgica Betsabá, a segunda Rebeca da Bíblia: parece que fazia pressão sobre o velho para favorecer o próprio filho.

O único filho que sabemos que Davi amava tenramente, e era correspondido com o mesmo carinho, foi o filho rebelde Absalão.

A história da rebelião de Absalão é, de certa forma, típica e vai se repetir muitas vezes, em muitos países, entre muitos povos. O filho deseja ocupar o trono de seu pai, recruta um exército, quase consegue o seu intento, e o rei foge. E, no entanto, no final, graças às habilidades do grande general (neste caso Joab) o Rei recupera seu trono. O filho é morto na última batalha.

Esse caso, no entanto, diferencia-se dos outros. Em primeiro lugar pela perspectiva histórica. A batalha é também a continuação do conflito entre Saul e Davi, entre as tribos de Israel e da tribo de Judá (o historiador tende para o lado de Judá, embora tente permanecer "objetivo"). Mas também porque é uma história muito pessoal, um drama familiar, uma tragédia familiar, semelhante às tragédias gregas. Embora nas tragédias gregas exista a lamentação, não há sentimentalismo. A tragédia lembra a escultura, não a pintura. Péricles foi louvado por não derramar lágrimas pela morte de seus filhos. Os heróis bíblicos jamais teriam sido merecedores de tal elogio.

(...) Durante a batalha decisiva, Davi tinha uma única preocupação: "O que está acontecendo a Absalão?", "O jovem Absalão está bem?" perguntava a todos. Quando descobre que venceu e que Absalão estava morto, Davi recolhe-se em seus aposentos para lamentar, chorar, sofrer. "Ó meu filho! Meu filho Absalão! Absalão, meu filho! Eu preferiria ter morrido no seu lugar, meu filho!!". Enquanto o rei não parava de chorar e lamentar, Joab enfureceu-se: "Hoje o senhor humilhou os seus soldados, aqueles que salvaram a sua vida", disse ele. "Eu estou vendo agora que o senhor ficaria muito feliz se hoje Absalão estivesse vivo e todos nós estivéssemos mortos. Vá agora. Se não fizer isso (...) amanhã de manhã nenhum deles estará do seu lado. E esse seria o pior desastre de toda a sua vida". Vencemos uma guerra por vós, para a sua família, os nossos homens morreram e o senhor chora pelo inimigo? , continuou, e com razão. Então Davi entendeu, levantou-se e foi sentar-se no portão da cidade.

(...) Na Bíblia não há a atuação da Moira, o destino não decide. Não acontece o que homens e mulheres querem ou decidem, e ainda assim nada acontece independentemente de sua vontade ou das suas decisões. Davi muitas vezes se dirige a Deus antes de uma batalha decisiva ou de sitiar uma cidade, implorando-lhe para revelar-lhe os desígnios de sua decisão. Só a ele prestará ouvidos. Davi então se comportará de acordo com a "vontade de Deus", isto é, de acordo com a própria intuição. E, no entanto, Davi jamais se dirige a Deus para um conselho quando precisa tomar uma decisão sobre outro ser humano, seja uma de suas mulheres, filhos, concubinas, generais, ou seu povo. Sabe que, nesses casos, Deus nunca oferece conselhos, deixa o homem decidir por si mesmo. Os homens decidem livremente.

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