O significado jurídico da dissidência como presente no natal

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13 Dezembro 2016

"Polêmicas a parte, fé verdadeira ou crendices ingênuas, ateísmos de variada origem e interesse, nenhuma dessas diferenças importa se o nascimento do Menino Jesus e sua vida posterior forem projetados até as causas 'legais' invocadas para Ele ser assassinado na cruz. Assim, a crítica da lei feita por Vicén e lembrada por Muguerza, comparada com as leis e os projetos de governo do Brasil depois do golpe, demonstra que os 'pacotes' de presente que ele está oferecendo à sociedade civil neste natal, além de estarem muito mal 'embrulhados', escarnecem a tradicional mensagem trazida ao mundo pelo Aniversariante", constata Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.

Eis o artigo.

A dependência orgânica de todo o corpo humano ao bom funcionamento do coração tem servido à imaginação para atribuir-lhe também a função de ser a sede dos sentimentos das pessoas. As razões para isso são convincentes e a festa de natal contribui para sustenta-las. Com o perdão dessa licença material de imagem, diante do natal o coração humano pode se comportar, primeiro, em forma de diálise, absorvendo o sangue da história, herdado de uma placenta materna capaz de condicionar e movimentar a vida de um Recém Nascido ao feitio de como ela veio de fora, com seus defeitos e suas virtudes; depois, como sístole, aquela função cardíaca de cuidado, limpeza, purificando os resíduos nocivos à boa saúde de todo o corpo, devolvendo um sangue permanentemente renovado ao organismo para libertar sua vida de toda a impureza capaz de abreviá-la.

À semelhança do que acontece com a vida de cada pessoa, as funções do coração, seus movimentos, seus reflexos, o deixar-se afetar pelas emoções, resumem a vida de toda a humanidade. Como é de pressão que essas funções dependem, a necessidade de equilíbrio entre a alta e a baixa serve de imagem também para comparar as causas motivadoras dos seus graus de intensidade sobre os sentimentos das pessoas. Leva-nos a perguntar se um ordenamento jurídico, uma lei, têm poder suficiente para disciplinar a pressão do amor, do ódio e da indiferença, por exemplo, frente ao conhecido e apriorístico ditado “o coração tem razões que a razão desconhece”.

A Criança lembrada no dia de natal criou quando adulta uma pressão extraordinariamente forte entre a diálise do passado e uma sístole de dissidência histórica muito grande, um sentimento indignado de franca oposição aos poderes institucionais da sua época, tanto os políticos quanto os religiosos, ao limite de ambos acabarem se unindo contra Ela, matando-A numa cruz. Poderes de o-pressão sacrificando gente oprimida para silencia-la, portanto, embora não seja nenhuma novidade, continua sendo uma das maneiras mais conhecidas de gerar efeito contrário, a própria celebração do natal servindo para atestar o fato.

Como era prioritariamente de corrupção moral e espiritual as graves acusações contidas nas denúncias do já adulto Jesus Cristo, o natal deste ano, aqui no Brasil, convida a pensar-se na possível semelhança entre as do passado e as de hoje, inclusive sobre os efeitos que os sentimentos humanos ligados a umas e outras possam influenciar ou até presidir a interpretação das leis vigentes.

Espalhar a relho o dinheiro de mercadores no pátio do templo - na época fazendo o papel de banco - por desviarem as finalidades do ambiente e roubarem do povo, já se assemelha às imposições financeiras internacionais e nacionais da nossa economia, criando efeitos anti-sociais os mais diversos; acusar escribas e fariseus de hipocrisia, enganando e explorando gente pobre e indefesa, comparando-os com sepulcros caiados, identifica-se com toda a investigação e punição atual de corruptores e corruptos, ladrões do dinheiro público; defender a satisfação de necessidades vitais mesmo contra a lei, como aconteceu na famosa concordância com as/os discípulas/os em saciarem a sua fome num sábado, com lei proibindo isso, legitima, agora, as ocupações de terra e prédios públicos por gente sem-teto, sem-terra, índia, quilombola e estudantes; defender mulheres e crianças consideradas legalmente, então, como meras coisas enumerar elogios e bem aventuranças reservadas para as/os pobres, para as/os famintas/os e sedentas/os de justiça, prometendo serem saciadas/os, nada disso o passar dos séculos conseguiu apagar, nem as instituições, as leis e os direitos assimilar.

Alguém será ideologicamente tão mutilado de não perceber, implicadas nessas tomadas de posição, um lado visível de condenação e censura contrário a violações de direito e moral idênticas - de usura, de mentira, de desprezo e de opressão econômica, política e social - acontecendo ainda hoje aqui no Brasil, sacrificando sempre a classe composta por multidões pobres?

Grande parte da confusão interpretativa das nossas leis é vítima dessa conjuntura, atualmente dividindo opiniões sobre a corrupção política, o que é ou não é isso, o que deve ou não deve ser punido. Ressurge a eterna discussão sobre a validade, ou não, da presença da moral no direito, avisando qualquer intérprete dos conflitos humanos de que a lei já parte de uma evidente impossibilidade quando pretende disciplinar toda a realidade. Permanentemente mutável e sujeita ao mais variado tipo de pressão, a realidade é inapreensível em sua totalidade. Aí, a interpretação da lei, como decorrência estrita e rigorosa dos seus enunciados, sem qualquer concessão à moral, foge para a abstração e a ideologia, em busca de uma legitimidade ambígua, satisfeita com a aparência de um poder de mando avesso ao reconhecimento de que a justiça não se esgota na lei, uma verdade que o Menino celebrado no natal mostrou, quando ignorada, ser um péssimo presente para lembrar o seu aniversário.

Porque a insistente busca de novos paradigmas para interpretar e aplicar as leis, quase sempre parte do que já é, por mais que a justiça exija outra alternativa, pois, como tanto insistiram as profecias do passado e insistem as de hoje, entre elas até alguns juristas felizmente, o que já é está impedindo o que ainda não é, mas tem exatamente o direito de ser. A aplicação das leis, então - quando desconsidera o seu próprio poder classista e de exclusão social, a interculturalidade, a interdisciplinariedade, o pluralismo jurídico, próprio da democracia e do pedestre “direito achado na rua”, amparada apenas em rubricas doutrinárias, antecedentes jurisprudenciais, conselhos antigos e desatualizados de como preencher lacunas, costumes arraigados, por mais superados se mostrem, o grau de poder superior das relações de produção e de divisão do trabalho - está tão distante da realidade que acaba “sobrecarregando os ombros das suas vítimas, sem mexer um dedo em defesa delas”, como o Menino aniversariante no natal provou depois de adulto.

Conflitos desafiadores de soluções ousadas e urgentes como esses, aqui apenas tangenciados e propostos à discussão, precisam ser relembrados numa data que a história se encarregou de deturpar, escondendo-os sob um frenesi mercantil de troca de presentes, sem nenhuma ligação com o Presente que o Menino trouxe para a humanidade, tão bem sintetizado na lista das Bem Aventuranças e no reconhecimento das ações necessárias para um juízo final das nossas ações, presididas por amores e verdades de difícil, quiçá impossível contestação.

Em 2002, por exemplo, a Alianza Editorial, de Madri, reuniu “Doze textos fundamentais da ética do século XX”, assinados por conhecidos filósofos e juristas daquela época. Um deles, Javier Muguerza, intitula a sua contribuição sob uma chamada original e provocativa: “A obediência ao direito e o imperativo da dissidência”. Faz uma análise de uma polêmica mantida entre dois juristas, Elias Diaz e um ex aluno seu Felipe Gonzalez Vicen, mantida sobre os limites da obediência ao direito. Aderindo a opinião de Felipe, Muguerza destaca um dos seus fundamentos, novamente sublinhando a parcialidade da lei responsável pelas injustiças dela derivadas, legitimado devendo-se reconhecer o imperativo da dissidência em relação a ela. Traduzindo livremente o texto para o português, lê-se:

O direito é uma ordem coativa de natureza histórica, na qual se reflete o enfrentamento de interesses muito concretos e o predomínio de uns sobre os outros. O direito expressa a prevalência de uma constelação social determinada e é, neste sentido, o instrumento de dominação de uma classe e seus interesses sobre outra ou outras classes e seus interesses. Um instrumento porém, e aqui radica a sua contradição de princípio, que pretende revestir validez e obrigatoriedade, não só para a classe que representa, mas para toda a sociedade”(página 285).

Polêmicas a parte, fé verdadeira ou crendices ingênuas, ateísmos de variada origem e interesse, nenhuma dessas diferenças importa se o nascimento do Menino Jesus e sua vida posterior forem projetados até as causas “legais” invocadas para Ele ser assassinado na cruz. Assim, a crítica da lei feita por Vicén e lembrada por Muguerza, comparada com as leis e os projetos de governo do Brasil depois do golpe, demonstra que os “pacotes” de presente que ele está oferecendo à sociedade civil neste natal, além de estarem muito mal “embrulhados”, escarnecem a tradicional mensagem trazida ao mundo pelo Aniversariante.

Se a paz na terra só pode ser reconhecida como efeito de justiça e pela ação das pessoas “de boa vontade”, como o Menino propõe, nem uma nem outra podem se efetivar sob um poder político corrupto, desmoralizado a cada mês, pela queda em cascata de cada um dos seus ministros. Se não tem ética para desautorizar o legítimo “imperativo da dissidência”, não contribua para algum ataque cardíaco do sentimento popular, negando-lhe o melhor presente de natal. Renuncie.

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