Sobre quando legisladores fazem violência ética contra o povo

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20 Setembro 2016

"Os procuradores quiseram destruir não apenas a imagem de um homem, mas a história de um povo de maioria marginalizada dos bens a que têm direito. E quando esse povo mestiço e misturado, de muitas caras, cores e idades consegue acreditar em sua força, quando começa a erguer-se e organizar-se, os doutos magistrados, imaginando destruir apenas um matam a história de muitos e ferem sua dignidade. Insensatos! Espetáculos para si mesmos e para os que rezam pela mesma cartilha elitista e pretensamente purista que os inspira", escreve Ivone Gebara, religiosa, filósofa e teóloga. 

Eis o artigo

Muito se tem falado sobre a ‘sociedade do espetáculo’, expressão cunhada pelo pensador francês Guy Debord e título de um de seus livros. A ‘sociedade do espetáculo’ é uma crítica a certas formas de se relacionar e de ‘aparecer’ uns aos outros nos tempos contemporâneos. Gostamos de aparecer e ser reconhecidos por aquilo que parecemos ser. O espetáculo modifica o ordinário da vida, chega até a mudar acontecimentos, cronologias, biografias, situações, complexidades sociais e culturais para responder a interesses econômicos e ideológicos mascarados muitas vezes com nobres razões. Fazem aparecer ilusões que dissipam a realidade ordinária em que vivemos e somos. 

Além da alienação produzida, a quantidade de espetáculos oferecidos cria no público uma sensação de insegurança, sobretudo porque não temos condições de checar a veracidade do que é apresentado. Perguntas como: será verdade? será possível? como foi feito? por quê? nos habitam e angustiam. Qualquer reflexão, qualquer opinião é não só sujeita a essas perguntas marcadas pela dúvida como podem ser interpretadas de diferentes maneiras. Há um sentimento de dúvida e suspeita que envolve nossas antigas certezas e convicções sociais. É como se não soubéssemos mais pisar o solo da realidade atual ou como se a verborréia de opiniões transmitidas pelos meios de comunicação tecesse mais e mais dúvidas em nossos corações. Sim, falo de nossos corações porque não se trata apenas de argumentos ou provas racionais, mas de convicções que sustentam nossa vida cotidiana. Convicções que fazem com que os sentidos tecidos de liberdade e verdade possam continuar sendo fios importantes capazes de sustentar a rede onde repousam nossos sonhos e nosso futuro.

Por isso é com ‘temor e tremor’ que ponho no papel sensações e impressões vividas...

Esta última semana assistimos no Brasil a uma convocação coletiva promovida por promotores públicos (Ministério Público Federal) para acusar um homem público de crimes contra o povo. Uma inabitual montagem de tecnologias audiovisuais e um palavrório pretensamente objetivo pareciam mais um marketing político do que um procedimento jurídico.

Mas, o espetáculo acusatório na realidade não foi só contra um homem, foi no meu entender, contra uma grande parcela do povo.

Daí a sua gravidade. Atacar um líder ou acusá-lo publicamente é de certa forma atacar também a parcela do povo que acreditou ou acredita nele, sobretudo quando se trata de nossa história recente. Se fosse um líder da Idade Média ou do período colonial a falta seria menos grave. Embora um líder possa trair seu povo temos que ter provas irrefutáveis para acusá-lo. E isto porque um líder representa os valores perseguidos por um grupo, representa sua causa, suas necessidades e ideais. É aquele ou aquela a quem se entrega reciprocamente a responsabilidade da condução de um processo coletivo. É a representação social das pessoas que buscam valores e caminhos sociais e políticos semelhantes. Então acreditar num líder é de certa forma acreditar também em si mesmo e naqueles que conosco acreditam. Certamente este não é um ato isento de limites, paixões, dúvidas, erros e imperfeições visto que a perfeição é apenas um devaneio de nosso desejo, uma imagem que construímos para nos equilibrar no trapézio da vida. A perfeição,sabemos bem, não existe nas relações humanas. O humano é imperfeito, misturado, contraditório e é aí mesmo que reside sua beleza e criatividade. A vida é, pois, essa mistura em que uma rusga, uma pequena decepção, um descontentamento vivido num instante são capazes de fazer desmoronar o idílio construído. A vida nos ensina isso, mas os discursos espetaculares e legalistas dos promotores parecem desconhecer essas danças, acrobacias, meandros ocultos e surpresas da vida. Esta se mostra entre luzes e sombras, numa mistura de muitos tons e sons enquanto que a Lei pretende a clareza, a objetividade, a imparcialidade. Não seria essa consideração ou essa crença um engano? Isto porque a Lei feita por cérebros humanos, mesmo aquela que é considerada universal, repousa sobre o ambíguo e contraditório concreto da vida humana. Mesmo querendo ir além do vivido imediato, mesmo querendo clamar pela perfeição e justeza das Leis nada nos protege das muitas limitações inerentes a essa vida humana que é a nossa. Sabemos bem que a excessiva claridade torna o ato de enxergar impossível, pois a luz intensa nos ofusca. Da mesma forma a tão falada transparência se torna enganosa, sobretudo quando ‘quebramos a cara’ contra uma parede de vidro. A Lei não estaria também nesse claro-escuro da vida? E, não seria uma ilusão colocá-la num lugar isento de contradições ou acima delas?

O que os jovens procuradores da república fizeram dentro do meu limitado sentir e pensar foi diminuir o povo, especialmente uma parcela do povo que acreditou numa esperança, que fazia uma aposta sobre sua dignidade e autonomia. Foi isso que senti com as exposições aparentemente seguras dos jovens procuradores, sobretudo de um entre eles. Como no mito de Narciso inebriado pela própria imagem, eles também viam sua momentânea e gloriosa imagem refletida naqueles a quem eles mesmos serviam. Inebriados com a glória disfarçada em Lei e em justiça enxovalharam a história recente de uma grande parcela do povo brasileiro com suposições e com um palavreado técnico para fazer aparecer sua competência. Eles eram o espetáculo! As explicações no fundo não se dirigiam apenas ao líder popular visado e reconhecido nacional e internacionalmente, mas tocaram uma grande parcela do povo, aqueles ‘descamisados’ que conseguiram acreditar em si mesmos, em sua força e dignidade. Seus discursos transmitidos pelos meios de comunicação os tornavam os novos heróis de uma apreciada guerra contra a corrupção. E muitos de nós incautos não percebíamos a trama e a raiz das intenções ocultas do espetáculo.

Desesperados/as deixamos talvez que as acusações corroessem nossos corações e convicções.

Os procuradores quiseram destruir não apenas a imagem de um homem, mas a história de um povo de maioria marginalizada dos bens a que têm direito. E quando esse povo mestiço e misturado, de muitas caras, cores e idades consegue acreditar em sua força, quando começa a erguer-se e organizar-se, os doutos magistrados, imaginando destruir apenas um matam a história de muitos e ferem sua dignidade. Insensatos! Espetáculos para si mesmos e para os que rezam pela mesma cartilha elitista e pretensamente purista que os inspira.

Quiseram destruir uma ética política coletiva em formação, ética incipiente dos pequenos acreditando nos pequenos, dos retirantes, dos sem terra, dos sem teto, dos sem casa, dos diferentes... Com todos os limites inerentes aos sonhos e à realidade essa era também a ética retratada na vida de seu líder. Não um líder perfeito, mas um líder à imagem das contradições de seu povo. Um líder que fala a mesma língua do povo, que tem história parecida, que sofreu dores semelhantes e tentou lutar por bens de sobrevivência e não de acumulação. Com certeza cometeu erros, foi levado por paixões, negociações, escorregou, levantou-se... Mas, um líder! Atire a primeira pedra quem não tiver pecado!

Senhores jovens promotores vocês quiseram destruir os caminhos de uma dignidade possível através da ascensão social e vital da posse de casa, terra, comida, trabalho... Não perceberam que havia milhares de pessoas com uma história comum nesse ‘acusado’ sujeito e objeto de sua ira e de seu escárnio. Os senhores se sentiram apenas juízes capazes de acusar, embora dissessem que não lhes cabe o julgamento final. Talvez, sem perceberem fizeram do uso da Lei um exercício de violência contra o povo, ou melhor, contra uma grande parcela do povo, aquela que por um curto tempo provou o sabor de uma mesa farta, de escola perto de casa, de filho com diploma universitário... Senhores o gosto bom da dignidade não desaparece facilmente. Experimentada uma vez ela fica embora muitos queiram oferecer chicletes para que esse sabor desapareça de sua boca e de seu sonho.

A Lei usada pelos senhores ainda tão jovens está em conflito com o respeito e a moralidade maior devida à história do povo. Vocês nem pensaram na história do povo! Apenas destacaram a figura de um líder, parcelaram sua vida, retiraram dela apenas um elemento que chamaram de ‘corrupção’ sem nada provar em concreto... Vocês manifestaram o declínio ou o enfraquecimento da Lei, reduzida a pura ideologia política, usada para justificar interesses de minorias dominantes, minorias cujos ventres estão saciados, mas a ‘alma’ continua loucamente gananciosa. Vocês foram o triste ‘espetáculo’ que escondia as razões e os motivos reais que os animaram. Em vocês também outros se escondiam e sem mostrar suas caras faziam de vocês máscaras do espetacular teatro.

É através da violência que a Lei, não qualquer Lei, mas aquela interpretada para favorecer alguns em detrimento da maioria se impõe e aparece como espetáculo em forma de ‘brado retumbante’ dos fazedores da justiça legal.

Sinto afirmar que a Lei não é para todos e que não é verdade que “ninguém está acima da Lei”. A maioria dos privilegiados vive sem a Lei que legisla direito e deveres para outros. Outra maioria vive abaixo da lei, nos subterrâneos onde a Lei e o Direito quase não existem. A Lei, à luz da vida visível dos pobres e marginalizados, não existe para todos como se afirma e como vocês jovens procuradores repetem. Isto é pura retórica, imaginação do pensamento ilustrado! Na prática a Lei e o Direito não são para todos assim como o pão, a terra, a casa, os cuidados com a saúde não o são. Aqui a vida cotidiana, a vida real fala mais alto do que a Lei! Só ela é capaz de dissipar a força de algumas ilusões... Como falar de direito à comida e à saúde em terra de famintos?

A Lei só tem pretensões de universalidade na boca dos legisladores e dos defensores da teoria do direito universal, daqueles que vivem em “berço esplendido” e podem dar-se ao luxo de desenvolver as interpretações e a jurisprudência que convém aos seus clientes e a si mesmos.

Vimos o espetáculo de como uma elite forja uma guerra constitucional contra outra num lamentável teatro no qual a vida do povo, vida frágil e preciosa, é totalmente abandonada ou trocada pelo cálice inebriante do poder e da glória. Instaura-se uma violência legal e moral que ignora a vida real das pessoas e mais, ignora a arte de governar que exige negociações, conversações, acordos e desacordos.

Indiferentes à vida real “impura” dos que vivem no Brasil, os jovens ‘procuradores’ da república ‘procuraram’ sua própria glória e talvez até agradar aos seus ocultos senhores.

O que dá grande tristeza é que as manchetes divulgadas no meio dos mais pobres tiveram ares de uma pretensa moralidade. Foram divulgadas e proclamadas fazendo crer que eram as últimas verdades sobre o líder e seus seguidores. Sinto que há uma crueldade veiculada nesse espetáculo como se quisessem dizer ao povo ou a uma grande parcela do povo que não se pode mais acreditar na sua dignidade, num Brasil melhor sem as esmolas roubadas e ‘lavadas’ pelos donos do dinheiro. É como se alguns quisessem reafirmar a restauração da ‘casa grande e da senzala’ em pleno século XXI... Restaurem suas senzalas fétidas, fiquem em seus guetos, longe de nós. Alegrem-se quando lhes permitimos desfilar na avenida, sambando. Acolham a pacificação que fazemos nos seus espaços. Nós seus senhores temos entrada em seus becos e morros, podemos eliminar seus filhos marginais que ameaçam nossa segurança... Nós ‘a outra parte do povo’, a boa, a raça pura tecida pelo dinheiro, nós, aqueles que determinam quem vive e quem deve morrer conhecemos e construímos a verdadeira história. Nós temos os relatos verdadeiros da história do Brasil... Não ouçam os relatos de um retirante vindo do nordeste num pau de arara, um operário, um reles sindicalista... Trata-se de um mistificador... Um pobre ladrão disfarçado em político amante dos pobres... Ele é apenas o ‘chefe do bando’ de ladrões, dos exploradores do povo... Não acreditem nele porque ele são vocês!

A narrativa de uma história de ascensão é profundamente incomoda para os que se escondem atrás da Lei e defendem interesses ocultos e manifestos em nome dela. Pode-se observar como os relatos sobre o líder apresentaram-se como mais verdadeiros do que os relatos do líder sobre ele mesmo. E, por isso, no dia seguinte os procuradores não hesitaram em afirmar publicamente que é normal que um acusado se defenda.

Jovens procuradores vocês parecem desconhecer os árduos caminhos da vida humana, da luta cotidiana pela sobrevivência nas terras onde dominam os coronéis de dentro e os donos do capital de fora!

Vocês persuadem o povo a trair suas origens, sua situação, sua caminhada e a acreditar em relatos que são alheios à sua própria vida e experiência. Ilusionismo da Lei e do palavreado sobre a justiça... Confronto de ‘relatos de si’ e de relatos ‘sobre o outro’... Quem tem razão? Quem não tem razão? E se não houver razões? E se houver apenas a necessidade de viver e viver com dignidade? Quem poderá garanti-la no marasmo em que vivemos?

Vocês crucificaram muitos usando não só as leis, mas tocando a esperança popular, a retidão das buscas, as tradições de honestidade e de bem viver. Este foi o caminho escolhido para violentar o povo, o melhor caminho para abalar a vida e as crenças de uma grande parcela do povo.

A verbosidade pode até convencer os incautos, mas não sustenta vidas, não sustenta políticas públicas, não sustenta o direito de ter direitos.

Pensar... Deixemo-nos pensar antes de abraçar qualquer discurso ou qualquer partido... Deixemo-nos pensar antes que o espetáculo das palavras públicas dos legisladores nos inebrie... Ajudemos uns aos outros a pensar nas armadilhas que a ‘dignidade’ das Leis podem preparar, sobretudo para aqueles/as que não têm direito ao pão cotidiano!

Senhores legisladores ainda é tempo para sair do ‘espetáculo da Lei’ e de encontrar seres vivos, com histórias vivas nas muitas praças, escolas, ruas e vielas de nosso país...

Senhores legisladores, não seria também tempo para repensar a função das Leis e do Direito dentro da história plural de nosso povo?

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