Chevron no Equador: um assunto de poder

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23 Agosto 2016

Uma corporação transnacional das mais poderosas do mundo, Chevron (Texaco), se queixa de ter sido vítima de tratamento injusto, denegação de justiça e outros maus-tratos, por parte do Equador de tempos neoliberais, e por essas reclamações, de fatos que alega que aconteceram entre 1964-1992, justamente quando os governos colocavam os interesses corporativos acima das prioridades nacionais, o país se viu obrigado a pagar 112 milhões de dólares, no passado mês de julho 2016 [1].

A reportagem é de Irene León, publicada por America Latina en Movimiento, 12-08-2016. A tradução é do Cepat.

A transnacional, após ter causado significativos danos ambientais na Amazônia, inverteu a responsabilidade e com insuspeitos argumentos impôs à República do Equador, ou seja, ao povo e suas instituições, uma ação ante a Corte Permanente de Arbitragem de Haia (2009) [2], acusando o país de lhe causar prejuízos estendidos em um certo período.

Mas, esta é a mesma transnacional que, em um caso precedente [3] (2003-2011), conhecido como o dos “afetados”, foi responsabilizada por danos a populações amazônicas e sentenciada, em instâncias nacionais, a indenizar com uma soma de 9,5 bilhões de dólares aos demandantes, cerca de 30.000 pessoas. Sentença descumprida pela transnacional que, ao contrário, rebate, acusando estas comunidades indígenas e camponesas de extorsão.

Também se esquivou da sentença a pedir perdão às comunidades amazônicas pelos agravos causados, sem o qual o parecer estipulava um ressarcimento adicional de 8,5 milhões de dólares. Ao contrário, parece abrigar a expectativa de que o país lhe peça perdão no marco da arbitragem.

A demanda de arbitragem da Chevron ao Equador contém elementos tanto para escapar de sua responsabilidade no caso dos “afetados”, como para coibir as políticas de soberania energética, produtiva e econômica enunciadas no país. Pois, a arbitragem extrajudicial, preferida pelas corporações, por considerá-lo ‘expedito’ e distante dos ‘rudimentos’ da legislação internacional, exige aos países renunciar suas prerrogativas nacionais e em alguns casos até internacionais.

Mais ainda, como destaca o especialista Gus Van Harten [4], apenas as corporações podem processar os governos e estes últimos só podem se defender, em meio a processos que não são independentes, nem transparentes e cujos procedimentos não são claros. Exercem, além disso, grande influência na seleção dos árbitros, na sede das arbitragens e outros elementos, que otimizam as condições para a obtenção de reiterados resultadas em seu favor.

Isto é manifesto na demanda da Chevron contra o Equador, onde as variantes de ‘procedimento’ compreendem a inclusão constante de novos elementos, a ‘subdivisão’ de problemáticas e inclusive um ‘reinício’, que lhe permitiu agregar alegações à demanda em curso, ao passo que, durante anos, a defesa do Equador não obteve resposta a seus requerimentos, a tal ponto que, após um acúmulo de solicitações sem resposta, o país se viu obrigado a solicitar, sem êxito, a cessação de alguns árbitros [5].

Além disso, a definição de ‘prejuízo’ ou de ‘injustiça’ com a qual a corporação formula sua demanda, não se refere às conhecidas conceptualizações de desigualdade ou injustiça apegadas aos princípios de direitos humanos, mas aponta para alguma perturbação do privilégio de ‘trato mais favorável’ ao investimento, o comércio e a rentabilidade, que se posicionou como argumento inapelável nos tribunais de arbitragem internacional.

A sede de arbitragem é os Estados Unidos, país reconhecido por uma importante simbiose entre a economia corporativa e o mundo político. Para ilustrar com um exemplo, citado por Alejandro Teitelbaum [6], autor de uma importante obra sobre transnacionais, direitos humanos e democracia, mencionamos o caso da ex-secretária de Estado estadunidense, Condoleezza Rice, membro de várias corporações, cujos serviços no diretório da Chevron foram tão apreciados que quiseram colocar seu nome em um importante navio [7].

Mas, este não é um caso isolado, numerosos estudos e acompanhamentos de caso lançam dados e números sobre o modo como o conjunto de ‘Mecanismos de solução de controvérsias’ contemplam, nas palavras da estadunidense Lori Wallach, “especiais privilégios e direitos só para uns: os investidores estrangeiros, a quem confere mais poder que aos cidadãos e governos” [8].

São parte desta arquitetura do comércio transnacional os acordos de investimento, tais como o Tratado Bilateral de Investidores entre Equador e Estados Unidos [9], sob cujo guarda-chuva mercantil Chevron argumenta sua demanda de arbitragem e alega ser vítima de denegação de justiça, de um suposto conluio intersetorial e outros. Mas se trata, claramente, de uma aplicação retroativa, pois o TBI assinado em 1993 só entrou em vigor em 1997, ao passo que a companhia se retirou do país em 1992.

São por tais tipos de traços reiterados, que denotam o afã excessivo de velar pela plena segurança jurídica dos investimentos realizados pelas multinacionais, colocando os Estados receptores e seus povos em um segundo plano, que mais do que ‘regras’ de comércio transnacional, fala-se em uma ‘arquitetura jurídica da impunidade’ [10].

O poder em toda sua amplitude

A Chevron figura entre as maiores transnacionais do mundo, só seus ingressos operativos e vendas, em 2015, acenderam a $ 129.900’000.000,00 [11], equivalente a três vezes e meia o orçamento nacional equatoriano desse mesmo ano, 36,3 bilhões [12], 16 vezes o orçamento de saúde. E isso que, em razão da depreciação do petróleo no mercado mundial, 2015 não foi um ano tão bom para a transnacional, se comparado com 2014, quando seus ingressos operativos foram de $ 200.500’000,00 [13], ou seja, cinco vezes e meia mais que o mencionado orçamento anual do país.

Seu poderio se expressa em uma ampla expansão pelo mundo e a operações estratégicas e fusões, como a ocorrida em 2000 com a Texaco. Esta prática de poder e estratégia integral são também patentes na estratégia da demanda arbitral contra o Equador, cujos componentes comunicacional, econômico e político atuam como complemento de uma ofensiva legal sem barreiras.

E mais, a amplitude de ações deixa entrever que a demanda de arbitragem é apenas uma parte de uma movida estratégica relacionada à geoeconomia petroleira. Um indício: a petição formulada ao governo dos Estados Unidos, em 2012, para que se suspenda as vantagens alfandegárias ao Equador, como medida de pressão indireta.

No processo de arbitragem, enquanto acusa o Equador de ‘conluio’ entre governo e povo afetado e censura seu eventual encontro, a transnacional expande o claustro arbitral quando o requer, açoita as instituições equatorianas e seus porta-vozes com adjetivos vários. As palavras ‘corrupção’, ‘fraude’, ‘coligados’ são, inclusive, argumentos da demanda. Isso se reflete em uma permanente ação comunicacional de descrédito do país, que o autor Orlando Pérez, inclusive, a associa com a estratégia de golpes brancos [XIV].

O Equador, por sua parte, em desigualdade de condições, se moveu com circunspecção, talvez buscando precautelar sua reputação, frente a uma multiplicidade de truques, através dos quais operou um deslocamento de sua situação de vítima para o banco dos acusados. É uma defesa ‘defensiva’ e disciplinada aos condicionamentos do mecanismo arbitral.

Mesmo assim, há outra saída? É possível reverter o cenário arbitral, especialmente se persistem situações pendentes? É possível conceber um restabelecimento de equilíbrio, à luz de novas evidências que mostram a lesão causada ao Equador?

Abundante bibliografia, com significativas credenciais acadêmicas, sustenta os traços do sistema arbitral e dos tratados de investimento, como os que são apresentados pela transnacional para acusar o Equador. Está em debate igualmente o desequilíbrio de um sistema injusto, que prioriza a segurança dos investimentos privados e coloca os países como concorrentes de menor perfil, que devem se defender, por fora do amplo acervo de legislação internacional e de direitos humanos, como se as questões de soberania fossem só um mal-entendido de termos contratuais.

Uma demanda internacional extrajudicial contra a República não é um julgamento qualquer, pois para além da soberania, tem a ver com a geoeconomia e geopolítica petroleira. Em outras palavras, é uma questão de Estado, que impacta o povo e suas instituições, que deveriam se comprometer em uma estratégia sustentável de defesa integral e multidisciplinar.

Além disso, o Equador não tem para se defender apenas a evidência de um ecocídio [16], que produz consequências irreversíveis em um dos ambientes de maior biodiversidade do mundo, mas que, nos 24 anos transcorridos após a partida da transnacional, um remanescente de 800 piscinas de resíduos tóxicos contaminou água, ar e terra, impediram práticas agrícolas, subtraíram o desfrute do habitat, causaram enfermidades, e outros.

E isso é apenas uma parte das consequências ulteriores de uma má prática ambiental deliberada, pois como destaca o Presidente Rafael Correa, nessa época, já existiam tecnologias para evitar estes ecocídios e o do Lago Agrio é 85 vezes maior que o causado pela British Petroleum, no Golfo do México [16].

E, justamente, é determinante a partir da visão geopolítica, especialmente de defesa da soberania, a exposição documentada de fatos e números, para mostrar ao mundo as evidências da contaminação, que amparado pelo mandato constitucional de defender povo, soberania e territórios, foi realizada pelo Presidente Correa. Isto é uma marca histórica que aumenta o sentido de responsabilidade na gestão de Estado, de modo inverso à tendência de governantes anteriores, que atuaram, ao contrário, como auxiliares das corporações estrangeiras.

Estes fatos mexeram amplamente com movimentos sociais, personalidades, diversos atores sociais do mundo, que se expressaram e, no caso, até se mobilizaram para defender o Equador desta perversa inversão de papéis. Além disso, numerosas instituições, congressos nacionais, instâncias internacionais e até a OPEP emitiram sua solidariedade ao país.

O pagamento, os embargos e outras confusões

A Chevron utiliza sem rodeios argumentos do ‘caso afetados amazônicos’ para sustentar a arbitragem, defende que este caso fragiliza o mencionado Tratado Bilateral de Investimentos; pede ao país ordenar o cessar das ações empreendidas por essas comunidades em outros países, e mais, denuncia como um descumprimento de laudos arbitrais, que o governo não anule a sentença de Lago Agrio [17] e não corte as ações subsequentes dos amazônicos [18], mas, em contradição com isto, acusa como fraudulento qualquer intercâmbio entre nacionais.

Tanto é assim, que no recente incidente do pagamento de 112 milhões de dólares, que o país se viu obrigado a custear à transnacional, por um laudo arbitral sobre denegação de justiça, houve confusão. Pois, além da arbitragem, a transnacional sustenta um emaranhado de julgamentos e apelações, em diferentes partes, para se esquivar do pagamento que ela, sim, deve aos indígenas e camponeses amazônicos.

Estes últimos, por sua parte, na busca de mecanismos para fazer respeitar a sentença em seu favor, interpuseram um embargo aos bens da Chevron no Equador e outros países. Por isso, quando se anunciou o pagamento do Equador a Chevron, os amazônicos reivindicaram o montante da arbitragem como um abono aos 9,5 bilhões que a transnacional lhes deve.

Por outro lado, a Chevron também pretendia, por sua vez, um embargo de bens equatorianos para resgatar o montante antes descrito e retirar a sua responsabilidade com os amazônicos. Razão pela qual os indígenas e camponeses amazônicos tiveram que suspender o embargo no Equador, diante da consideração que eles são parte deste país e que qualquer confiscação dos bens nacionais não constitui um ressarcimento para eles, nem para o povo equatoriano, mas ao contrário.

Em síntese, a Chevron não só sai muito mais livre, como também conseguiu transferir o país de seu papel de vítima para o banco dos acusados e, além disso, o Equador pagou a Chevron e não o contrário. E este laudo arbitral é apenas um componente de uma demanda ainda mais ampla, em curso.

O país está imerso na armadilha de um sistema arbitral, que tem mais relação com os negócios das transnacionais do que com os sistemas de justiça, e para sair urge refrescar a estratégia de defesa, com uma visão mais integral que nunca, onde tudo aponte para a defesa do povo e de sua soberania e, para isso, cada equatoriano(a) conta, cada gesto de coerência conta.

Notas

[1] Entre 1991 y 1993, Texaco (Chevron) apresentou sete demandas comerciais ao Equador, por fatos ocorridos em décadas anteriores. Em 2016, a Corte Federal de Washington ratificou uma sentença de ‘denegação de justiça’ da Corte Internacional de Arbitragem da Haia, que obrigou o país a pagar 96,3 milhões de dólares, mais juros, à transnacional (ao longo do artigo, se menciona a dólares estadunidenses);
 
[2] Permanent Court of Arbitration, PCA Case N. 2009-23: 1.Chevron Corporation and 2. Texaco Petroleum Company v. The Republic of Ecuador, https://pcacases.com/web/view/49;
 
[3] Julgamento 2003-0002, Corte de Justiça de Sucumbíos, Juiz Nicolás Zambrano, fevereiro 2011. http://www.redibec.org/pdf/sentencia_TEXACO.pdf;
 
[4] Gus van Harten, Five Justifications for Investment Treaties: A Critical Discussion, York University - Osgoode Hall Law School, 2010, Canadá, http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1622928;
 
[5] Diego García Carrión, Caso Chevron: defensa del Ecuador frente al uso indebido del arbitraje de inversión, Procuradoria Geral do Equador, Gestão 2008-2015, Equador, 2015;
 
[6] Alejandro Teitelbaum, Al Margen de la Ley: Sociedades Transnacionales y Derechos Humanos. ILSA, Bogotá: 2007, pág. 86;
 
[7] Idem 6, pág. 87;
 
[8] Transnational Institute, Laurie Wallach, ‘Public policies under attack’, Netherlands:2015, https://www.tni.org/es/node/22496;
 
[9] SICE, Tratado entre a República do Equador e os Estados Unidos de América sobre a promoção e a proteção de investimentos,  http://www.sice.oas.org/bits/usaec_s.asp;
 
[10] Juan Hernández Zubizarreta y Pedro Ramiro, Contra la lex mercatoria: Propuestas y alternativas para desmantelar el poder de las transnacionales, ICARIA, Espanha 2015;
 
[11] Chevron, 2015 Annual Report, https://www.chevron.com/-/media/chevron/annual-report/2015/2015-Annual-R...;
 
[12] Ministério das Finanças, ‘Proforma do Orçamento Geral do Estado’, República do Equador 2015, http://www.finanzas.gob.ec/wp-content/uploads/downloads/2014/11/Proforma...;
 
[13] Idem. 11;
 
[14] Orlando Pérez, coautor do livro La verdad no contamina, El Telegrafo, Equador, 2014, estima que a campanha de comunicação da Chevron, associada à estratégia de golpes brancos, custa uns 700 milhões de dólares. http://ecuadorinmediato.com/index.phpmodule=Noticias&func=news_user_view...;
 
[15] São 80.000 toneladas de resíduos petrolíferos vertidos entre 1964 e 1992, em um entorno de 500.000 hectares, no Lago Agrio, Amazônia equatoriana;
 
[16]  Em 2015, a British Petroleum se comprometeu a indenizar em 20,8 milhões de dólares, pelo derramamento de 4,9 milhões de barris de petróleo no Golfo de México, em 2010 http://www.bp.com/en_us/bp-us/commitment-to-the-gulf-of-mexico/deepwater..., http://internacional.elpais.com/internacional/2015/10/05/actualidad/1444...;
 
[17] Idem 3;
 
[18]  Segundo la Chevron, as coisas são assim: “On February 7, 2013, the Tribunal issued its Fourth Interim Award in which it declared that the Republic of Ecuador “has violated the First and Second Interim Awards under the [BIT], the UNCITRAL Rules and international law in regard to the finalization and enforcement subject to execution of the Lago Agrio Judgment within and outside Ecuador, including (but not limited to) Canada, Brazil and Argentina.” The Republic of Ecuador subsequently filed in the District Court of the Hague a request to set aside the Tribunal’s Interim Awards and the First Partial Award (described below), and on January 20, 2016, the District Court denied the Republic’s request.” Chevron, 2015 Annual Report, págs 50-53 https://www.chevron.com/-/media/chevron/annual-report/2015/2015-Annual-R...

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