Precisamos conversar. Entrevista com a teóloga islâmica Hamideh Mohagheghi

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12 Agosto 2016

Com a recente ascensão da islamofobia em toda a sociedade alemã – e na sociedade europeia mais amplamente –, a teóloga islâmica Hamideh Mohagheghi adverte contra uma retirada do debate público. Agora é o momento de os muçulmanos praticarem a sua fé com confiança, dar um passo à frente e se pronunciar.

Hamideh Mohagheghi é advogada, teóloga islâmica e pesquisadora no campo dos estudos religiosos. Atualmente ela trabalha como pesquisadora do departamento de Teologia Islâmica da Universidade de Paderborn, na Alemanha.

A entrevista é de Canan Topcu, publicada no sítio Qantara.de, 13-05-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

A palavra árabe “qantara” significa “ponte”. O portal de internet Qantara.de representa o esforço concertado do Bundeszentrale für politische Bildung (Centro Federal para Formação Política), do Deutsche Welle, do Instituto Goethe e do Institut für Auslandsbeziehungen (Instituto de Relações Culturais Internacionais) de promover o diálogo com o mundo islâmico. O projeto é financiado pelo Ministério das Relações Exteriores alemão.

Eis a entrevista.

Hamideh Mohagheghi, a senhora veio do Irã para a Alemanha em idade jovem, há mais de 40 anos. Mudar-se para uma cultura diferente alterou alguma coisa para a senhora pessoalmente como muçulmana – no sentido de sua religião, por exemplo, ou em como costumava praticá-la no dia a dia?

Morei no Irã durante os primeiros 22 anos de minha vida e foi aí onde me socializei. A minha criação foi bem rígida e muitas coisas eram proibidas. Noções de moralidade e o que o a mulher tinha – e não tinha – permissão de fazer sempre estiveram em primeiro plano. A mulher não deveria se mostrar em sociedade e tinha de se adaptar a um certo código de vestimenta...

Aqui na Alemanha, eu pude deixar de lado todas estas noções exageradas a respeito da moralidade com as quais eu cresci. Para mim elas não existem mais, pois fui capaz de dar um passo atrás e contemplá-las objetivamente aqui. Quanto à prática de minha fé, na verdade nada mudou – ou, pelo menos, nada que eu tenha percebido. Mas creio que nós mudamos inconscientemente quando passamos um longo período numa cultura que é diferente àquela em que crescemos e fomos socializados.

Pode ser mais específica sobre o que deixou de lado?

“Se fizer isto ou aquilo, você vai para o inferno” ou “Se não fizer isto ou aquilo, então Deus vai te punir”. São frases que eu ouvia o tempo todo. O medo de um Deus punitivo era o meu companheiro permanente. Orientar o meu comportamento de acordo com a recompensa que receberia no futuro caso agisse ou não de determinada forma: isso eu não faço mais. A minha motivação para o que faço e como me comporto não é mais orientada exclusivamente em direção ao tempo futuro.

A situação que a senhora descreveu durante sua infância e juventude é uma situação que crianças ainda enfrentam hoje, e isso não necessariamente em países islâmicos com regras rígidas. Aqui na Alemanha crianças muçulmanas também crescem com a ideia de um Deus colérico e com medo do fogo do inferno. O que se pode fazer para evitar que esta relação com Deus carregada de medo e este comportamento pecaminoso sejam passados de uma geração para a seguinte?

A instrução religiosa islâmica nas escolas aqui dá às crianças uma chance para aprenderem sobre um conceito diferente de Deus e uma doutrina divergente da fé. Se forem capazes de aprender sobre a sua própria religião a partir dos mestres com boa formação didática e uma base profunda dos ensinamentos religiosos, elas poderão superar padrões rígidos em suas próprias famílias e cultura. Pelo menos, é o que espero.

Será que este processo de mudança só será visível na próxima geração, quando os filhos muçulmanos de hoje se tornarem os pais muçulmanos de amanhã e transmitirem suas crenças aos descentes?

Não necessariamente. Já podemos observar algumas mudanças. O que tenho percebido na Baixa Saxônia é que há um certo repensar acontecendo – tanto nas comunidades em torno das mesquitas quanto nas famílias. As crianças que participam de instruções religiosas islâmicas na escola voltam para casa e confrontam os pais e mães com dúvidas: perguntas e tópicos aos quais os pais podem, primeiramente, responder com espanto. Eu muitas vezes ouço imãs dizendo que estão debatendo a questão do que se deve ensinar às crianças e jovens nas mesquitas. Ensinar-lhes apenas ditados piedosos, orações e versos de cor e ensinar-lhes como ler o Alcorão: no longo prazo, não são o suficiente. Isso porque os mais novos têm hoje uma base para a comparação; eles desafiam os imãs com o que aprenderam na escola sobre a sua religião.

Então a senhora está dizendo que, idealmente, as crianças adquirem uma base sólida de conhecimento sobre a religião islâmica na escola e, portanto, aprendem um jeito diferente de pensar sobre o seu Deus. E quanto aos pais delas? A fé de muitos muçulmanos parece mais uma superstição do que uma relação piedosa com Deus, nutrida por uma contemplação profunda do Alcorão. Será que os adultos também não precisam de alguma “tutoria” sobre o que o Alcorão diz, sobre o que as suras significavam no tempo em que foram escritas e sobre como elas deveriam ser interpretadas hoje?

Conheço um grupo feminino em Hanover que se reune uma vez por mês há mais de 20 anos para falar e refletir a respeito do que diz o Alcorão. Até onde sei, tais fóruns para troca [de ideias] não se pode encontrar em todos os lugares, mas certamente faria sentido se pudéssemos. O que está em falta – até mesmo nas comunidades de mesquita – é uma infraestrutura para lidar, de forma mais intensiva, com o Alcorão e com o Islã. Hoje, podemos nos informar via internet, mas isso, por sua vez, abriga o perigo de acabarmos entrando nos fóruns errados.

Há um outro tópico que eu gostaria de trazer: Que importância atribui ao ensino de teologia islâmica em universidades alemãs?

Durante anos, nós aqui na Alemanha nos preocupamos com a prática da fé. Quer dizer, por anos nos preocupamos sobre como adoramos, com que frequência adoramos, quando e por que jejuamos, e se e por que devemos usar véu. Estas perguntas agora estão acompanhadas pela questão do Islã extremista e do terrorismo islâmico. Até o momento, lidamos muito raramente com a teologia por detrás de tudo isso, com a teologia em termos de pôr a questão de Deus no centro das nossas considerações.

De que Deus estamos falando? Como este Deus deveria nos ser apresentado? O que queremos ensinar às nossas crianças sobre este Deus? Percebo isso como um empobrecimento da teologia islâmica no mundo ocidental. A minha esperança é que as questões essenciais sejam tomadas em maior profundidade nos centros de teologia islâmica nas universidades alemãs e que uma análise teológica profunda e perspectivas espirituais tenham mais espaço para a fé em si. Mas creio que é demasiado cedo ainda para predizer que tipo de impulsos sustentáveis irão irradiar destes centros.

Em um congresso em Frankfurt, a questão sobre o que constitui um Islã europeu, ou alemão, foi recentemente discutida. O que distingue o ramo do Islã que as pessoas vivem aqui?

Islã alemão, euro-Islã: são apenas rótulos que não me dizem muita coisa. Se falamos, por exemplo, sobre os muçulmanos da Indonésia ou do Canadá, não usamos termos como Islã canadense ou indonésio. A história do Islã mostra que os muçulmanos sempre se adaptaram a estruturas sociais existentes. Posso imaginar como os muçulmanos na Alemanha poderiam – e deveriam – praticar sua fé. Antes de tudo: os muçulmanos fazem parte desta sociedade, então os legisladores precisam criar um marco dentro do qual estas pessoas podem praticar a religião. E vice-versa: os muçulmanos precisam aceitar que outros valores e costumes também existem nesta sociedade. Não devem impor os seus padrões de bom e mau, moral e imoral, sobre os outros. Quando, por exemplo, as pessoas se vestem de modo mais permissivo em público, isso não deve ser censurado pelos muçulmanos. Tenho em mente uma coexistência caracterizada pelo respeito mútuo.

Nos debates públicos, o Islã e os muçulmanos são frequentemente associados com a violência. Todo aquele que se expõe e explica que não é bem assim, que o Islã é uma religião de paz, acaba sendo ridicularizado. Como os muçulmanos podem defender, de maneira plausível, a sua religião neste país?

De forma alguma ofendendo-se ou retirando-se, dizendo que os muçulmanos não serão aceitos ou ouvidos independentemente do que fizerem. Seria errado se retirar do diálogo e cultivar um clima de ressentimento. Exatamente neste momento, é importante que os muçulmanos vivam sua fé com confiança, avancem assertivamente em público e se pronunciem em toda a oportunidade disponível. E, sobretudo, o que importa é viver e defender os valores que distinguem o Islã: misericórdia, bondade, caridade, paz de espírito, paciência.

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