Obedecer é mais fácil do que entender

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12 Agosto 2016

“Obediência é submissão e passividade: morte do pensamento. Daí a importância de uma escola que seja capaz de ensinar as múltiplas mediações entre o indivíduo (um homem caído) e a sociedade”, escreve Milton Hatoum, escritor, em crônica publicada por O Estado de S. Paulo, 12-08-2016. A tradução para português é de Beatriz Perrone-Moisés. 

Eis o texto.

O menino parou para ver o homem, caído na calçada da farmácia. Depois me perguntou: por que todos os negros são pobres?

Nem todos são pobres, eu disse, mas são os mais pobres da nossa população.

“Por quê?”

Como explicar a escravidão para uma criança de 9 anos? Falei como pude do tráfico de escravos da África para o Brasil e do trabalho escravo durante mais de três séculos; disse que, depois da proibição do tráfico e da lei que os libertou, a imensa maioria dos brasileiros de origem africana não pôde estudar. Contei ao menino que algo parecido tinha acontecido com os índios, com uma diferença: os índios viviam aqui havia uns cinco mil anos, mas foram escravizados do mesmo jeito. Milhares de índios foram assassinados, ou morreram de doenças transmitidas por pessoas que invadiam e roubavam as terras indígenas. Disse que isso ainda acontece em vários Estados brasileiros; depois, eu mostraria esses lugares no mapa do País.

Pensei em falar de um senador facinoroso: um ex-presidente da Funai que, no final dos anos 1980, permitiu e estimulou a entrada de garimpeiros no território ianomâmi. Mas desisti, pois teria que explicar ao menino o significado de senador, facinoroso, presidente, Funai, povo ianomâmi.

Além disso, eu estava ansioso para encontrar uma caixinha de analgésico nas prateleiras da farmácia; mas a criança não saía da calçada, o olhar deitado no homem caído. De repente, perguntou se o pai daquele homem velho tinha sido um escravo.

Talvez o bisavô ou tataravô dele. E expliquei o que era um tataravô. Depois, disse: O teu tataravô materno também era descendente de africano...

A enxaqueca turvava minha vista na tarde quente e abafada daquele sábado carnavalesco; a batucada forte animava a avenida, o bairro, o mundo, mas minha cabeça em chamas pedia uma dose de dipirona e horas de silêncio num lugar escuro.


Há poucos meses, aquela criança, agora um rapazote de quase 13 anos, me disse que uma professora de ciências humanas estava ensinando o assunto da escravidão. Me mostrou um mapa do mundo e outro do Brasil, fotografias de escravos (africanos e índios) e citou poemas e textos que tinha lido na escola.

“É mais ou menos o que você disse naquela tarde de enxaqueca.”

Ver um brasileiro caído e falar da escravidão, dos milhões de desvalidos e quase escravos de hoje, da exploração e da persistente e vergonhosa desigualdade social pode ser uma abstração. Lembrei aquela tarde de carnaval e cefaleia na calçada de uma farmácia pretensamente asséptica, o branco da iluminação e da porta automática, em contraste com o mendigo no chão. Esse contraste (nossa maior indignidade) gerou uma inquietação na criança de 9 anos, uma recusa a olhar passivamente o homem na calçada. Recordei também uma frase de Riobaldo, o jagunço letrado do romance Grande Sertão: Veredas:

“Obedecer é mais fácil do que entender”.

Obediência é submissão e passividade: morte do pensamento. Daí a importância de uma escola que seja capaz de ensinar as múltiplas mediações entre o indivíduo (um homem caído) e a sociedade.

Não mencionei nada disso ao adolescente, pois ele vai assimilar ou descobrir essas mediações em sua própria escola. Tampouco disse que um dia ele deveria ler O Abolicionismo, de Joaquim Nabuco, os ensaios de Alberto Costa e Silva sobre a África, a novela Coração das Trevas, de Conrad, e A Queda do Céu – Palavras de Um Xamã Yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert.

Mas, quando lhe mostrei esses livros, percebi que curtiu a capa do volume A Queda do Céu: um belo rosto indígena de perfil, olhando para cima, para o céu que pode desabar...

Abri uma página do longo e comovente depoimento do xamã ianomâmi Davi Kopenawa e li:

“Quando eu era mais jovem, costumava me perguntar: ‘Será que os brancos possuem palavras de verdade?’. ‘Será que podem se tornar nossos amigos?’ Desde então, viajei muito entre eles para defender a floresta e aprendi a conhecer um pouco o que eles chamam de política. Isso me fez ficar mais desconfiado! Essa política não passa de falas emaranhadas. São só as palavras retorcidas daqueles que querem nossa morte para se apossar de nossas terras...”.

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