"Não houve uma disputa para nos convertermos. Mas Pannella quis ficar com a cruz de Romero." Entrevista com Vincenzo Paglia

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24 Mai 2016

"Quando ele viu a minha cruz peitoral, ele me perguntou de onde vinha. Eu expliquei a Marco Pannella que era a cruz do arcebispo Oscar Romero, do qual eu tinha acompanhado a causa de beatificação como postulador. Eu lhe contei que Romero tinha sido morto porque se lançava contra uma oligarquia opressiva, para defender os pobres, fortalecido apenas pela sua palavra e pela rádio, que difundia as suas mensagens, tanto que, às vezes, faziam com que ela saísse do ar. E isso o entusiasmou, ele pegou a minha cruz, revirava-a em suas mãos, até a colocou em si mesmo, não queria mais me devolvê-la..."

O arcebispo Vincenzo Paglia, presidente do Pontifício Conselho para a Família, sorri com uma pitada de tristeza. Ele falou com Pannella ainda na semana passada. A última vez que o viu foi na quarta-feira, no hospital, "mas eu ainda não pude cumprimentá-lo, ele já estava sedado, fiz uma oração por ele".

A reportagem é de Gian Guido Vecchi, publicada no jornal Corriere della Sera, 20-05-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.

Quem sabe o que ele teria dito...

Ah, mas ele sabia! Eu tinha lhe dito: "Te acompanho com a oração, hein!". E ele me abraçava. Éramos amigos. Não havia, entre nós, uma disputa para nos convertermos, mas para aprofundar a nossa amizade respeitosa e fraterna. Nós somos um, ele me disse, "somos ecclesia!". Falávamos, e ele quis beber do meu próprio copo.

É verdade que o senhor lhe levou uma mensagem do papa?

Ele tinha escrito uma carta para Francisco, me pediu para entregá-la, e eu a levei ao Santo Padre. Ele queria que ele soubesse que o estimava muito: "Eu entendo e admiro o que Francisco está fazendo", ele dizia. Ele falava dele muitas vezes, assim como de Wojtyla. No dia do aniversário de Marco, o papa, como resposta, quis lhe enviar de presente o seu livro sobre a misericórdia e uma medalha que representa Nossa Senhora com o Menino. Eu os levei à sua casa, referindo-lhe as palavras do papa: ele também disse que gostava dele.

A sintonia sobre o tema das prisões, o compromisso contra a fome ou contra a pena de morte... Mas também havia motivos de forte divisão com a Igreja, do aborto à eutanásia, não?

Claro, e também nos contrastamos com franqueza, sem que isso rachasse a nossa relação. Porém, ultimamente, falávamos de outras coisas. Ele tinha me chamado em março, quando a doença tinha piorado, e ele não podia mais sair de casa: "Quero falar contigo", ele me disse. Desde então, nos vimos frequentemente. Eu ia encontrá-lo mais ou menos a cada dez dias.

E de que vocês falavam?

Há coisas entre amigos que permanecem na consciência. Ele estava interessado sobretudo nos temas espirituais. Eu me lembro de quando o vento movia os ramos, do lado de fora da janela, e ele exclamou: "Esse é o espírito que age e move a história, é mais forte do que tudo!. E devemos nos deixar guiar por esse sopro: você vê as gaivotas que voam?". E continuava: "Se eu penso na minha vida, eu lutei. O testemunho é a nossa verdadeira força". Pois bem, ele gostava de seguir em frente refletindo por horas sobre tudo isso... Comigo, ele gostava de falar muitas vezes sobre o Evangelho, sobre as palavras de Jesus, sobre a esperança.

Ele dizia: "Eu sou anticlerical, o meu espírito é religioso". Ele se definia como "diversamente crente". O que o senhor diz a respeito?

Às vezes, ele me dizia: "Eu acho que o Evangelho é a fonte que me inspira e me guia. Além disso, ele era um pilar até para Gandhi!". Ele gostava de uma frase de São Paulo, "spes contra spem", para ele era um ponto fixo: "Diante das manifestações de violência e de crueldade deste mundo, ele repetia, eu acredito que devemos continuar a nos opor também contra toda esperança ou, melhor, devemos ser esperança".

Personalidade complexa...

Sobre isso, não há dúvida, muito profunda e complexa. Uma vez, brincando, eu lhe disse: "O teu anjo é um pouco como São Marcos, um leão!". E ele: "É verdade, eu me sinto um leão!". Ele não se resignava, não era resignado.

Poucas semanas atrás, ele disse: "Não tenho medo de morrer. E, depois, mais 20 anos assim, imagine que saco! [che palle!]". Vocês falaram sobre a morte?

Não em abstrato, mas em relação à amizade. "Nós somos idosos, eu lhe dizia, mas eu espero permanecer como teu amigo para sempre. Mesmo se tivermos que morrer, devemos nos reencontrar. E tenho a certeza, querido Marco, de que quando estivermos diante de Quem nos julga, da multidão, se levantarão alguns daqueles desses milhões de famintos que dizem: Marco lutou por nós! E isso vai valer muito para ti". Ele me abraçava, às vezes, não terminávamos de nos abraçar.

Emboras nas diferenças óbvias, o que o senhor encontrou de admirável na história política de Marco Pannella?

O fato de gastar a vida nos ideais em que acreditou, sem fazer desses ideais um pedestal para enriquecer ou para ter um poder que não fosse o da sua palavra e das suas ideias. Eu acredito que é isso que Francisco também apreciou nele. Um homem que sempre foi rico das suas ideias.

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