É preciso uma orientação política ao novo individualismo frágil, mas criativo

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31 Março 2016

Passamos do individualismo estruturado e projetual da nossa primeira modernidade ao individualismo desenraizado e frágil, mas flexível e criativo, que preenche o nosso tempo. Dar-lhe uma forma política não regressiva – capaz de expressar o seu potencial de inovação e de vitalidade – é o grande desafio que nos espera. E é um desafio de ideias, de saberes, de projetos. Para liderar a mudança, é preciso primeiro pensá-la.

A opinião é do historiador e jurista italiano Aldo Schiavone, ex-professor das universidades de Nápoles, Bari e Pisa. O artigo foi publicado no jornal Corriere della Sera, 30-03-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

É fácil dizer "populismo". Na tradição cultural italiana, até pouco tempo atrás, essa era uma palavra marginal, muito pouco usada. Parecia vir de outros mundos e evocava imagens vagas e desfocadas: distantes movimentos revolucionários russos, massas sul-americanas magnetizadas pelo peronismo.

Hoje, especialmente entre nós, italianos (mas não apenas, na verdade: basta dar uma olhada no livro editado por Daniele Albertazzi e Duncan McDonnell, Twenty-First Century Populism: The Spectre of Western European Democracy), esse rótulo já se esforça para explicar tudo, ou quase tudo, aquilo que acontece na política italiana: primeiro para Berlusconi e, depois, para Salvini, e Grillo, e o próprio Renzi, enfim; e não só para dar conta de fatos e personalidades individuais, mas para descrever o costume político italiano no seu conjunto, incluindo aqueles inesquecível trecho de perene nervosismo, ao mesmo tempo frívolo e febril, que sempre o acompanha.

Na realidade, essa repetição tão inflacionada – como uma espécie de chave universal para entrar em toda a parte – esconde, creio eu, uma grave falta. Um verdadeiro vazio de conhecimento e de interpretação do que se tornou, ao menos desde os anos 1990, a sociedade italiana: as dinâmicas da sua composição; as mudanças que a atravessaram como um turbilhão; os pontos em que mais cedeu a sua velha ossatura (a "de classe", para deixar claro); os contextos em que mordem as mais novas desigualdades; quais são as suas características até agora imprevisíveis – hábitos, comportamentos, práticas de convivência – que estão começando a ganhar corpo e forma; onde e como se produzem as suas vivências emocionais e se condensam as suas convicções.

Não sabemos mais quase nada. Colocamos as pesquisas – um dilúvio de pesquisas – no lugar das análises, mas elas não são a mesma coisa. E a velha cultura política (a da esquerda, mas também, em boa parte, a democrático-liberal) onde não sabe ou não entende, diz: "populismo", e fica tranquila – como se tivesse acabado, quando ainda nem começou.

A Itália é o país do Ocidente sobre o qual a revolução de trabalho – que é a autêntica mudança do nosso tempo; todo o resto vem depois – teve o maior e mais esmagador impacto. Entrelaçamos as fragilidades históricas – também culturais – de uma industrialização tardia (e às vezes incompleta) com as outras, recém-adquiridas, fruto de uma desindustrialização precoce e não regulada, induzida apenas pelo exterior, e por incontroláveis compatibilidades de mercado.

Um mundo inteiro acabou em poucos anos: o da burguesia das empresas radicadas no território e das profissões intelectuais dominadas pela cultura humanista; diante de uma classe operária madura e consciente, que saiu do sistema de fábrica clássico.

A mudança teve consequências incalculáveis (e, ao contrário, gravemente subvalorizadas) sobre a percepção de si mesmo e do próprio destino pessoal para milhões de italianos, de todas as gerações: dos pensionistas, aos quais era repentinamente apagado o próprio passado, aos estudantes, já sem o futuro que os seus pais lhes tinham preparado.

Como imaginar que tudo isso não teria efeitos enormes sobre o plano dos comportamentos políticos? Que se tratava de algo bem diferente do que o único fim do PCI [Partido Comunista Italiano] e da Democracia Cristã? Era um modo abrangente de pensar a política e, antes ainda, a própria vida – um sistema total de pensamentos e de referências – que tinha implodido, porque estavam irremediavelmente comprometidas as suas bases materiais e sociais.

Não foi só um problema de "fim das ideologias" (como tantas vezes se repetiu): o que desapareceu foi uma arquitetura social inteira e, com ela, uma maneira de construir e de representar a relação de cada um com a própria existência.

O trabalho do terceiro milênio – de alta intensidade tecnológica e com uma demanda contínua por inovação – não gerava mais laços coletivos (nem de classe, nem de outro tipo), e não era mais um veículo de socialização de massa; e isso modificava na raiz características e conteúdos da democracia e da representação, e a própria qualidade das assembleias eletivas. Despedaçava e atomizava em relação ao passado, e onde antes havia interesses gerais e visões de mundo, agora havia uma poeirama de singularidade que pediam, cada uma, reconhecimento e visibilidade, e uma relação direta (ao menos midiático) com os líderes.

Para usar um léxico que teve muita sorte, uma sociedade "líquida" só podia ter uma representação política igualmente "líquida". É uma regra da qual não há como escapar.

E é justamente a novidade disruptiva desse fenômeno que se esconde por trás da propagação daquilo que chamamos de populismo: uma política que, não encontrando outros pontos para se apossar, persegue a multiplicação de sujeitos dessocializados (perdoem-me a expressão), prisioneiros do seu particular (do qual não sabem como sair), que não se reconhecem mais em nenhuma das mediações tradicionais – partidos, sindicatos e assim por diante – sem autêntica experiência de vida coletiva, com uma relação bastante problemática e inexplorada com as próprias competências e a própria ocupação (quando a têm), em busca de uma nova medida entre tempo de vida e tempo de trabalho, mas cargas (inevitavelmente) de desejos, de necessidades, de expectativas.

Passamos, em suma, do individualismo estruturado e projetual – mas rígido e tendencialmente repetitivo – da nossa primeira modernidade ao individualismo desenraizado e frágil – mas flexível e criativo – que preenche o nosso tempo. Dar-lhe uma forma política não regressiva – capaz de expressar o seu potencial de inovação e de vitalidade – é o grande desafio que nos espera. E é um desafio de ideias, de saberes, de projetos. Para liderar a mudança, é preciso primeiro pensá-la.

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