Traduzir a tradição: a "virada pastoral" do Concílio Vaticano II e o problema da Liturgiam authenticam. Artigo de Andrea Grillo

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18 Fevereiro 2016

Vincular a tradução litúrgica à "letra" do texto latino significa negar a questão litúrgica e não entender o Concílio Vaticano II. Por isso, precisamos hoje de uma nova Instrução para a aplicação da Reforma Litúrgica, ainda mais depois que a Evangelii gaudium restaurou o vigor e a lucidez à perspectiva conciliar.

A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, leigo casado, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.

O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 09-02-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

O que aconteceu com o Concílio Vaticano II? Ou, melhor: aconteceu algo no Vaticano II? Poderíamos dizer que o Vaticano II é como um "grande ato de tradução", que visa a traduzir a tradição em um contexto diferente, em uma nova cultura, para novas prioridades. Esse é o desafio a partir do qual o Concílio quis explicitamente se deixar pôr em jogo. E fez isso "mudando os critérios" com os quais a tradição legitima a si mesma.

No coração da "virada pastoral", encontramos o princípio, enunciado abertamente por João XXIII – e reiterado em muitos casos e com diversas palavras por Paulo VI –, da relação entre "a substância da antiga doutrina do depositum fidei" e "formulação do seu revestimento". O trabalho sobre a linguagem aparece na consciência inicial do Concílio como absolutamente determinante. Mesmo as mais recentes releituras do evento conciliar – por exemplo, em G. Routhier ou em J. O'Malley – sublinham a sua natureza de "evento de estilo" e de "evento linguístico".

O que determinou a virada, no campo litúrgico, é, ao mesmo tempo, um tríplice nível de "nova atenção", que poderíamos assim descrever breve e provisoriamente:

  • uma nova noção de "ação ritual" (não "ritus servandus", mas "ritus celebrandus");
  • um novo paradigma de participação (como participação comum em todas as linguagens do rito);
  • a necessidade de um procedimento de reforma dos ritos, à luz (e em vista) das duas primeiras aquisições, para torná-las concretamente possíveis e praticáveis.

Todas as questões que se abriram em torno das "traduções" devem ser enquadradas nesse amplo espectro de reivindicações, sem as quais não podemos hoje recuperar a sua profundidade e complexidade.

Digamo-lo em outras palavras: a "questão da língua", a partir de um certo ponto de vista, parece ser o lugar inicial e prioritário para permitir um "avanço" sobre todos os três níveis da atualização [aggiornamento]. Na realidade, se mal entendida, ou entendida de modo unilateral ou superficial, a aquisição das "línguas vernáculas" corre o risco de "apagar" a tensão que é interna à atualização propugnada pelo Concílio. A possibilidade de "traduzir nas línguas modernas" nunca deve resolver a relação com a linguagem ritual, reduzindo-a apenas ao "entender". Essa é uma das armadilhas que ameaça todo o debate, de ontem como de hoje.

1. Diversos critérios para salvaguardar a riqueza da tradição

Tanto aqui isolar três níveis diferentes da questão. A cada um deles corresponde uma "definição de liturgia" diferente, um "paradigma participativo" diferente e um "processo de Reforma litúrgica" mais ou menos necessário. Por isso, devemos julgar a questão da "tradução" em vista de uma questão sobre a "tradição" eclesial, em sentido lato, e litúrgico, em sentido estrito.

A pergunta que nos fazemos vem por Jerônimo e pode ser formulada assim: como se pode "ser fiel" à tradição da antiga doutrina mediante uma "tradução"? O que comporta o "traduzir"?

Nas respostas, identificaremos três modelos, pensados utilizando as categorias introduzidas por G. Lindbeck no seu texto fundamental "A natureza da doutrina".

1.1. O nível da fidelidade da formulação/revestimento (de verbal a verbal) – uma leitura proposicional da doutrina/traditio

O primeiro caso da "fidelidade" é, em essência, uma reproposição de uma tradição que "não pode mudar em nada", nem mesmo na sua expressão. Há, de algum modo, a certeza – que beira e muitas vezes ultrapassa a ilusão – de que as línguas modernas, as línguas vernáculas, podem/devem ser, simplesmente, o "molde" da língua latina, da qual se assume a "normatividade" em nível litúrgico. Há até a "pretensão" de bloquear as línguas modernas mediante o "glossário" do Catecismo da Igreja Católica! O que é "doutrinal", assumido dos esquemas catequísticos, pretenderia ser "normativo" para a elaboração das traduções dos textos litúrgicos.

Se considerarmos o modo com que a Liturgiam authenticam propõe a necessidade pela qual, na tradução, "o gênero literário e retórico dos vários textos da liturgia romana deve ser conservado", é bastante curioso que o que é típico de uma modalidade "expressivo/experimental" de um âmbito linguístico – por exemplo, o latino-romano – é assumido quase como um modelo expressivo que se deveria impor às outras expressões linguísticas.

Essa pretensão revela uma compreensão "instrumental" e, ao mesmo tempo, monumental da língua. O que importa, no fundo, nessa primeira forma de abordagem – que, afinal, encontramos expressada com esta rudeza apenas a partir de 2001 – é a correspondência formal, verbal e sintática, que deve ser perseguida do modo mais forte possível.

Na realidade, o discurso que nos é proposto pela Liturgiam authenticam encontra a sua justificação como oposição a um "teoria liberal" do traduzir, que é expressada muito fortemente no n. 19 da Liturgiam authenticam: "As palavras da Sagrada Escritura, como também as outras que são pronunciadas nas celebrações litúrgicas [...] não devem ser consideradas em primeiro lugar como se fosse quase o espelho da disposição interior dos fiéis; elas expressam verdades que superam os limites impostos pelo tempo e pelo espaço".

É evidente, portanto, que a "ratio" do documento Liturgiam authenticam está em uma reação apologética em relação a uma "deriva" pós-conciliar, percebida como "subjetivismo e relativismo liberal".

A esse propósito, é possível fazer duas observações:

  • não há dúvida de que o risco de "traduções livres demais" pode ter marcado a produção de textos posteriores ao "Comme le prévoit" e que era necessário chamar as Conferências Episcopais individuais a uma maior atenção;
  • por outro lado, uma resposta que pretenda restaurar a ordem na liturgia romana levando de volta a pluralidade das línguas a simples "instrumentos" para a comunicação das "res" ditas e pensadas em latim, parece-me, francamente, um remédio pior do que a doença.

O diagnóstico, embora exasperada e tornada quase apocalíptica, tem uma pertinência. Mas a terapia proposta pela Liturgiam authenticam é, em grande parte, desprovida de fundamento teórico e de verdadeira praticabilidade. O risco é de que os textos produzidos de acordo com esse critério "tranquilizador" sejam, de fato, inutilizáveis nas línguas vivas. E que as línguas vivas, justamente por isso, reivindiquem, por sua vez, por causa dessa configuração, uma autonomia ainda maior. O que, por outro lado, está incluído na avaliação original da "mediação linguística da fé", que não pode ser sequestrada por uma única tradição, embora antiga e de autoridade.

Por outro lado, é preciso lembrar, está cada vez mais difundida – inevitavelmente – uma produção de "liturgia latina não em latim". Esse não é um "erro para se remediar", um defeito de procedimento, mas é o fruto da "vida na sua inesgotabilidade", que vai ao encontro da palavra bíblica para traduzi-la em forma de oração, de invocação, de louvor, de bênção, de ação de graças sempre novas, por estarem estruturadas originalmente no "pensamento das línguas vernáculas". As "línguas vernáculas", em outros termos, não são simples instrumentos, mas formas de pensamento. Sobre esse ponto a Liturgiam authenticam é totalmente inadimplente, quase cega, ou cegada pela lógica apologética.

1.2. O nível da fidelidade da substância da tradição (de verbal/conceitual a verbal/conceitual) – uma leitura experiencial da doutrina/traditio

Uma leitura diferente da fidelidade, que só em parte corresponde à proposta oferecida pelo documento "Comme le prévoit", não se limita a considerar a relação entre palavra e palavra, mas dirige a sua atenção a uma "relação de relações": uma palavra está para o significado em um contexto linguístico como uma palavra está para o mesmo significado em outro contexto linguístico. Essa, poderíamos dizer, foi a grande abertura de liberdade que o pós-Concílio soube e quis respirar. São as "correspondências dinâmicas" que integram/substituem as "correspondências estáticas, formais, literais".

A consideração que "Comme le prévoit" faz das diversas perspectivas para se "calibrar" a tradução – o que está escrito, quem o escreve, para quem está escrito e de que modo está escrito – ajuda a considerar a relação estrutural entre "substância" e "revestimento", segundo uma maior riqueza.

Embora se – é preciso reconhecer isto abertamente – não se elimine, de fato, uma "redução subjetivista" da linguagem, diametralmente oposta, mas igualmente arriscada em relação à sua versão "objetivista".

Poderíamos dizer assim: tanto a leitura clássica – objetivista – quanto a leitura erroneamente atribuída ao imediato pós-Concílio – e que pode ser chamada de subjetivista – não conseguem valorizar plenamente o papel que a língua desempenha para o acesso do sujeito à tradição doutrinal e vital.

Se, de fato, a uma "leitura proposicional da doutrina" – que corresponde à absolutização da "tradução literal" – contrapusermos uma "leitura experiencial da doutrina" – que corresponde à absolutização do "significado interior" – acabamos perdendo, na realidade, o senso do contexto ritual que dá forma e autoridade à "experiência canônica" do texto escriturístico e do ordo ritual.

Uma dupla ilusão ameaça a contraposição entre leituras "objetivistas" e leituras "subjetivistas". A de poder abordar a questão "sem" reconstruir o contexto ritual de referência e a de poder fazer as contas com o "significado" na breve relação entre "palavra" e "conceito".

Para isso, é necessário perceber um terceiro nível, mais profundo e mais elementar da questão, que está, de algum modo, presente nas intenções de "Comme le prévoit", mas que é explicitamente excluído da abordagem – rigidamente objetivista – proposto pela Liturgiam authenticam.

1.3. O nível da integridade da experiência a se mediar (de verbal/não verbal a verbal/não verbal) – uma leitura cultural e linguística da doutrina/traditio

O que acontece com o Concílio Vaticano II? Que o primeiro modelo de "garantia da continuidade da tradição" é efetivamente e irreversivelmente superado. E superado justamente no próprio ato em que, no rito, admite-se a possibilidade de uma "linguae vernaculae usurpatio" (SC 36), de um "uso das línguas vernáculas". Nisso, insere-se um terceiro modelo, que é, desde a origem, uma mistura entre segundo e terceiro nível de fidelidade à tradição. Assume a novidade do "sujeito moderno", mas sem as ilusões de uma "virada liberal", mas sim com a consciência de uma solução "pós-liberal", em que objetivo pré-liberal e subjetivo liberal são mediados pelo "intersubjetivo" pós-liberal.

O espaço do Concílio Vaticano II é, em essência, a superação do modelo de tradução proposto – pela primeira vez, de modo tão ingênuo, apenas pela Liturgiam authenticam! Poderíamos quase dizer que o espaço da tradução se descerrou no momento em que a "virada pastoral" pôde conceber que a "substância da doutrina" podia assumir "uma formulação diferente do seu revestimento". Esse é o espaço da tradução, ao qual a Igreja Católica se lançou com um compromisso e uma ousadia, não imunes a possíveis excessos, mas com toda a clarividência e a sagacidade necessárias.

O cancelamento desse espaço nasceu do medo. Em outros termos, quando nos demos conta não só dos riscos que se corriam, mas também dos erros efetivamente cometidos, foi possível pensar que a "continuidade da tradição" podia ser garantida repropondo o modelo doutrinal clássico, proposicional, em um forma dupla, eficaz também no rito:

  • ou mediante o rito latino pré-conciliar, renunciando, portanto, a traduzir (ao menos as palavras, mas também as sequências, os ministérios, as modalidades de participação, os cantos, as vestes...);
  • ou mediante o rito conciliar, mas estruturalmente "reduzido" à sua forma latina, transliterada para as línguas vernáculas, sem qualquer tradução de verdade.

Negando o espaço interpretativo da tradução, nega-se a necessidade da virada pastoral do Concílio.

2. Superar a Liturgiam authenticam para permanecer no rastro do Vaticano II

Devemos nos perguntar, então: ao longo de qual direção podemos evitar esse resultado paradoxal, pelo qual, para obstaculizar uma "deriva liberal e desagregadora", sentimo-nos compelidos a desmentir a sábia abertura conciliar, contradizendo o próprio princípio que justifica o Vaticano II, ou seja, a "diferença" entre formulação e substância da doutrina.

Hoje, precisamos de um "modelo intersubjetivo" de tradução/tradição. Tal modelo, parece-me, consiste em três níveis de "nova percepção", que já encontramos comprovados no Concílio Vaticano II, que deu boa prova de si mesmo em mais de um caso logo depois do Concílio, mas que, com o tempo, como que se "ofuscaram" e se "perderam pelo caminho".

Esses três princípios constituem, de fato, a verificação de maior autoridade para poder definir corretamente uma "fidelidade" à tradição também mediante "tradução". Iludir-se que o "traduzir" pode ser um "ato técnico" que independe da competente interpretação dessa tríplice novidade é uma perspectiva tão ingênua quanto nostálgica, que não pode mais ter qualquer justificação.

Os três níveis nos quais se "pôs à prova" uma "teoria da tradução" são os seguintes e constituem – não por acaso – os pontos-chave do texto da Sacrosanctum concilium. Poderíamos dizer que uma teoria da tradução como a da Liturgiam authenticam decorreu – para além da reação aos abusos – de um esquecimento do texto da Sacrosanctum concilium. A Liturgiam authenticam, ao contrário de Comme le prévoit, assume uma "autenticidade litúrgica", independentemente da virada pastoral do Concílio Vaticano II. Ela está na tradição independentemente do traduzir, ex auctoritate e "por si mesma".

Enquanto o texto esquecido, ou seja, a Sacrosanctum concilium, impõe que não se pode propor essa solução simplista ao problema do traduzir. E faz isso indicando três elementos novos:

  • uma "definição de liturgia" diferente, que, como "actio sacra", nunca é redutível a "ritus servandus"; a natureza "simbólico-ritual" da liturgia, de cuja compreensão esses 50 anos, graças à Reforma Litúrgica, acenderam o nosso interesse, nos permitiu levar uma reflexão sobre a "linguagem", que pode orientar de modo diferente as prioridades e as inter-relações entre linguagens diferentes;
  • um "paradigma participativo" diferente, que supere as formas individualistas e cerimonialístico-exteriores de delegação ao sacerdote de um ato "ao qual é suficiente assistir", mas recupere, em vez disso, uma compreensão "multimedial" da ação ritual, saindo de modalidades muito intelectualísticas e funcionalistas de "assistência inteligente".
  • um necessário "processo de Reforma litúrgica", para permitir que os textos rituais e as sequências celebrativas não obstaculizem, mas, ao contrário, favoreçam tanto a nova experiência do rito cristão, quanto as formas de participação nele. Faz parte desse "processo" aquele "verter" que não se deixa determinar simplesmente como uma "técnica de transposição", que independa da interpretação.

A "questão do traduzir" – lembro-o mais uma vez – surgiu dentro desse grande ato de repensamento da tradição. Ela é "parte constitutiva" do ato reformador. Se é proposta uma "teoria do traduzir" que desmente a "virada pastoral", que assume uma tradição que não precisa de um "novo revestimento" para acessar à própria substância, mas que tem relação "imediatamente" com a substância, em uma língua que se imunizou de uma vez por todas da história, é evidente que todos os outros elementos que qualificam tal virada estão envolvidos e comprometidos.

É um estratagema muito simples, mas muito facilmente desmascarável: ele consiste em enrijecer a relação com o "traduzir" para impedir que cada um desses três níveis citados seja seriamente submetido não ao arbítrio dos indivíduos, mas à necessária "virada pastoral" de um evento como o Concílio Vaticano II, que, na sua qualidade de "evento linguístico", talvez tenha a sua característica mais decisiva.

Em outras palavras, vincular a tradução à "letra" do texto latino significa negar a questão litúrgica e não entender o Concílio Vaticano II: por isso, precisamos hoje de uma VI e nova Instrução para a aplicação da Reforma Litúrgica. Ainda mais depois que a Evangelii gaudium restaurou o vigor e a lucidez à perspectiva conciliar.

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Traduzir a tradição: a "virada pastoral" do Concílio Vaticano II e o problema da Liturgiam authenticam. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU