O legado freudiano no banco dos réus

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20 Mai 2011

Em alguns países, como os Estados Unidos ou a Alemanha, Sigmund Freud (1856-1939) costuma ser situado na categoria dos gênios, mas nem por isso sua obra representa unanimidade. Em outros, como França e Argentina - poderíamos incluir o Brasil? -, o pai da psicanálise não é menos do que um ícone. Nesse sentido, duvidar de suas teorias pode ser interpretado como uma blasfêmia. Foi com o propósito de blasfemar e, por isso, suscitar controvérsia, que a editora franco-argelina Catherine Meyer lançou-se ao desafio de coordenar um "front de oposição" a Freud, lançando em 2005, pela Les Arènes, O Livro Negro da Psicanálise.

A reportagem e a entrevista é de Andrei Netto e publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo, 21-05-2011.

O impacto da obra foi imediato - e rapidamente se internacionalizou. Composto em sua versão original de mais de 40 artigos assinados por filósofos, historiadores, psiquiatras e também pacientes, o livro explorava as dúvidas e os fracassos que pesariam sobre a "ciência" fundada por Freud, tomando por base cinco temas: mitos e lendas da psicanálise, seu sucesso, seus impasses, suas vítimas e uma proposta de prática pós-freudiana.

Para tanto, Meyer, 52 anos, encomendou ensaios a especialistas como Mikkel Borch-Jacobsen, autor de Anna O. - Uma Mistificação Centenária; Didier Pleux, diretor do Instituto Francês de Terapia Cognitiva; e Jacques Van Rillaer, professor de psicologia da Universidade de Louvain-la-Neuve e praticante das terapias comportamentais e cognitivas (TCC). Tratava-se, então, de um desafio a dogmas e mitos. O efeito, no entanto, não foi o alcançado, segundo admite Catherine Meyer. Em vez de abrir um debate sobre o lugar das terapias da mente, O Livro Negro da Psicanálise deu origem a uma espécie de acerto de contas entre praticantes da psicanálise e das TCC e a uma troca de farpas no mundo intelectual parisiense e internacional.

A bem da verdade, não se pode inocentar Meyer, que se dispôs ao desafio tendo o marketing como uma de suas preocupações centrais, verificada desde a escolha do nome da obra até seu grande mote: "Freud mentia". Essa polêmica ganha destaque no Brasil com a publicação de uma versão abreviada da edição francesa do Livro Negro da Psicanálise, reunindo textos de 23 ensaístas selecionados por Simone Perelson. Resta torcer que não seja igualmente vazia. Catherine Meyer - formada em Letras Modernas pela Escola Normal Superior, com mestrado sobre ópera romântica - diz esperar que não. Está no seu papel.

Eis a entrevista.

Na sua opinião, Freud era um mentiroso?

Sim, porque ele fraudou seus resultados. Não foi o único; há outros a trapacear no meio científico. Mas você sabe como as coisas funcionam na ciência: define-se uma hipótese, mesmo que inacreditável - como Édipo e o amor de um filho pela mãe e a pedra angular de nossa vida psíquica. Eis uma hipótese! Um filho tem desejo e quer ter relações sexuais com sua mãe. É o Complexo de Édipo. Quando se faz uma hipótese científica, a seguir passa-se à fase de verificação. Procede-se um percurso de pesquisa para constatar a hipótese pela sua eficiência. Quando se imagina um medicamento para a tuberculose, ele é testado em várias pessoas. A seguir, usamos a lixeira para jogar fora todas as hipóteses refutadas. O que os teóricos explicam muito bem no Livro Negro da Psicanálise é que Freud lançou hipóteses e elas nunca deixaram de ser apenas isso: hipóteses. Ele traficou a realidade para confirmar suas hipóteses.

É essa a sua visão sobre a hipótese central de Freud?

A hipótese central de Freud é sensacional! É ela que explica ao mesmo tempo a força e o poder da Psicanálise. Karl Popper explicou que a psicanálise não era uma ciência porque era irrefutável. O Complexo de Édipo é irrefutável. Se você argumenta: "Não, no meu caso não é verdade: eu detesto a minha mãe e adoro o meu pai" e se eu sou um psicanalista, eu lhe respondo: "Isso não refuta o Complexo de Édipo; o que você está fazendo é negar o Complexo de Édipo". É o gênero de teoria "coroa, eu ganho; cara, você perde". É sempre verdade. Karl Popper explicou essa incoerência muito bem. A partir do momento em que atribuímos tudo ao inconsciente, qualquer coisa pode ser verdade. Logo, digo eu, não é jamais verdade. Ou, ao menos, é inverificável. Outra armadilha da psicanálise é que todos os grandes teóricos se contradizem. O que Freud diz no início não é o mesmo que diz no fim, o que Freud diz é diferente do que diz Otto Rank, que é diferente do que diz Carl Gustav Jung. Uns dizem: "Veja, o Complexo de Édipo é simbólico, não real". Outros dirão "Não, é concreto". Dirão que uma criança - de 4 ou de 7 anos, de acordo com cada especialista - quer realmente manter relações sexuais com sua mãe. É uma teoria elástica. Elástica demais.

Sua análise, de uma "teoria elástica", me faz lembrar as críticas de filósofos da pós-modernidade que consideram a psicanálise e as teorias freudianas discursos metanarrativos que se dispõem a explicar o mundo, como o marxismo, por exemplo. É essa sua linha?

Absolutamente. Freud é um filósofo, muito mais do que um cientista. Ele se pretendia um cientista. Era um médico que desejava o Prêmio Nobel de Medicina, que desejava fundar uma ciência. Para ele, a sexualidade estava para o psiquismo como o bacilo de Koch está para a tuberculose. Ele desejava encontrar a etiologia de todos os problemas psíquicos. Depois veio Lacan, dizendo que não. Mas, para voltar ao tema "mentira", Freud trabalhou com pacientes e era protegido pelo segredo médico. Quando ele fazia uma descoberta sobre o que revelava um lapso ou um sonho, ao escrever um estudo de caso sobre o tema ele não podia revelar o nome de seus pacientes. Eles eram identificados como O Homem dos Lobos (Sergius Pankejeff), O Homem dos Ratos (Ernst Lanzer), Anna O., caso que foi analisado por seu mentor, Joseph Breuer. Tudo se baseia na palavra de Freud, e nós somos obrigados a acreditar em sua palavra. Como saberemos se o que foi dito é verdade? Berger, um dos primeiros historiadores da psicanálise, fez pesquisas e descobriu que Anna O. se chamava Bertha Pappenheim, e descobriu ainda que ela nunca foi curada. Há outros exemplos. Além do trabalho de historiadores, pode-se dispor da própria obra de Freud, que era muito vasta, afinal, ele era um gênio.

Era um gênio? Mas como Freud pode ser um mentiroso e um gênio?

Há muitos políticos que são geniais e mentirosos, por exemplo.

Uma das críticas comuns à obra que a senhora coordena é o próprio título. Seus detratores o consideram um oportunismo, já que antes o Livro Negro do Comunismo havia feito muito sucesso. A escolha do nome foi marketing?

É verdade que o Livro Negro do Comunismo fez muito barulho. Mas, na época em que pesquisei para o nosso, levantei quantos livros negros havia: não lembro se eram 30 ou 60. "Livro negro" é um conceito genérico para designar um balanço crítico. Porque usamos a expressão "livro negro" não quer dizer que vamos falar de genocídios. Alguns autores que integram a obra eram contra esse título. Mas queríamos fazer um livro para o grande público, ao contrário dos outros, muito acadêmicos. Nosso objetivo era reunir o front dos que refutam: filósofos, psicólogos, psiquiatras, pacientes, historiadores... Algo mais geral, mais voltado ao grande público. Sim, eu assumo que pensamos no marketing também. Mas era para mostrar que não seria apenas um livro acadêmico, mesmo que tenhamos nele muitos acadêmicos de alto nível.

Eu gostaria de ouvi-la sobre críticas contundentes que o seu livro suscitou na França na época de sua publicação. Jean Birnbaum, por exemplo, afirmou que seu livro parece fazer uma aproximação perigosa, uma equação psicanálise = terror.

O que aconteceu é que muitos psicanalistas e jornalistas, no caso de Birnbaum, em lugar de responder às questões abertas pelo livro, dizendo que não estão de acordo com tais e tais argumentos, tentaram lançar uma cortina de fumaça, fazendo acusações. Não houve um verdadeiro debate na França. Então me dei conta de que Freud é um ícone quase religioso. Atacar a Igreja teria sido menos chocante. Freud é um mito. Ao dirigir um livro, tomei todo o cuidado possível para que os ensaios fossem extremamente rigorosos e que não fossem escritos em tom agressivo, mas em tom analítico. O que lamentei foi que, em lugar de abrir uma verdadeira polêmica, uma discussão, houve ataques, apenas ataques.

Elisabeth Roudinesco constatou em artigo que determinadas citações de sua obra empregadas por autores que assinam o seu livro não são fiéis ao seu pensamento. O que a senhora responde?

Gostaria que ela nos indicasse essas citações.

Ela o fez. Escreveu um artigo, À Propos du Livre Noir de la Psychanalyse, citando trechos do livro e comparando-os à sua própria obra.

Nós não traficamos citações. Ela, sim, trafica citações. A senhora Roudinesco diz ser historiadora da psicanálise, mas não fala alemão. Todos os outros historiadores da psicanálise falam alemão. Eles leram Freud em versões originais e não nas traduções francesas, que não são boas. A senhora Roudinesco foi e é de uma grande má-fé.

Alguns críticos interpretaram o seu Livro Negro como um ataque frontal de adeptos das terapias comportamentais e cognitivas (TCC), que contestam abertamente a legitimidade da psicanálise. Como essa disputa entre a psicanálise e as TCC se reflete no seu livro?

É uma das questões em jogo, mas não a única. Algumas pessoas resumiram o livro a essa questão. Mas não é verdade. Para um jornalista, é fácil reduzir o livro a uma guerra entre duas escolas. É verdade em parte. Mas toda a pesquisa histórica que está no livro não tem nada a ver com briga de escolas. Os historiadores que constam do livro buscam o viés de historiadores, apresentando Freud como um médico que fez descobertas. Eles não têm nada a ver com TCC.

Mas esse afrontamento existe no livro.

Uma das razões pelas quais eu quis fazer esse livro é porque, na França, um psi é forçosamente um psicanalista, enquanto nos Estados Unidos, na Europa do norte, nos países nórdicos, há várias alternativas terapêuticas, entre as quais a psicanálise. A psicanálise não é o único deus no universo psi.

Mas Roudinesco, que é reconhecida como uma das psicanalistas mais importantes do mundo, afirma que a psicanálise é muito eficiente contra neuroses, mas não psicoses. Isso não é um mea-culpa?

Freud dizia isso também. Mas esse é outro problema. Na França, você pode se tornar psicanalista depois de fazer estudos de sociologia e passar por análise didática. Assim você se torna psicanalista. Não há nenhuma formação clínica. Nenhuma. Se o sujeito não tem formação clínica, como pode saber se tem diante de si um neurótico ou alguém que está em depressão muito grave?

A senhora disse que a verificabilidade é um dos problemas da psicanálise e uma das questões em jogo no livro. Mas não podemos verificar com precisão resultados em diversas outras Ciências Humanas. Por que a psicanálise não é uma ciência e a sociologia é uma ciência, a seu ver?

A sociologia não é uma ciência. A medicina ou a psiquiatria são ciências. E olhe lá, porque elas também não conseguem explicar por que alguns pacientes se curam e outros não. Deixe eu citar um exemplo: o autismo. Nesse assunto, estamos realmente no lado negro da psicanálise, porque ela fez muito estrago. A psicanálise, por meio de Bruno Bettelheim, que acusou as mães de serem responsáveis pelo autismo de seus filhos (mais tarde surgiriam denúncias de que ele maltratava os pequenos pacientes). Inconscientemente, dizia o autor, a mãe desejava a morte de seu filho. Além de ser extremamente irresponsável, já que sabemos que o autismo é um problema genético em grande parte, ainda é cruel, porque acusa uma mulher de ser a responsável por uma doença. Não bastasse, sabemos que não se pode curar o autismo.

Voltando ao assunto, sua definição de ciência se limita ao que se costumava chamar de "ciências duras", excluindo as Ciências Humanas.

É isso. A psicanálise é uma teoria que repousa sobre a areia, sobre o segredo, sobre o que não se pode verificar, o que é irrefutável, o que não pode ter sua eficácia comprovada. É claro que há coisas positivas. Não sou contra a constatação do inconsciente. Muitos teóricos estão de acordo. Mas isso não quer dizer que estamos de acordo com o inconsciente freudiano. A ideia de que temos um inconsciente que pode determinar certos comportamentos não é negada por ninguém, mas isso pode não ter nada a ver com a sexualidade, com o Complexo de Édipo, a angústia da castração. É isso que eu refuto.

Não podemos usar o mesmo argumento da cura e de sua verificabilidade para a TCC?

Mas eu não vejo quem pode se dizer hoje em dia capaz de curar tudo, como fazemos com doenças tratáveis por antibióticos. Estamos no início. O conhecimento do psiquismo e a cura do psiquismo têm apenas 150 anos. Estamos na situação dos médicos da Idade Média, que ousavam tratar retirando e injetando sangue.

A senhora já fez análise?

Não, não fiz análise. O que fiz foi uma curta psicoterapia analítica que me fez muito bem. Por um ou dois anos fui a um terapeuta. Eu não era doente. Tinha apenas alguns problemas existenciais, e a terapia me fez muito bem. Não tenho nenhum acerto de contas com a psicanálise. O conselho que daria é, se você é doente, não faça psicanálise. Eu descobri algo que funciona muito bem para casos de problemas existenciais, por exemplo, que é a meditação.

A senhora faz meditação? E como avalia sua eficácia?

É algo extremamente bem avaliado em termos de eficácia. Para avaliar, é preciso ter códigos. Um americano, por exemplo, introduziu a meditação na medicina há 30 anos, o que nos dá uma boa base. Ele fez um programa de oito semanas que se chama Mindfullness Based Stress Reduction (MBSR). Ele submeteu durante oito semanas pessoas que sofriam de um certo tipo de inflamação a encontros semanais, divididos em dois grupos: um grupo fazia meditação, com auxílio de videocassetes, etc; outro jogava cartas, xadrez, etc. Ao fim de oito semanas, o grupo que havia meditado tinha inflamações bem menores. Os que jogaram cartas, tinham inflamações maiores.

Surpreende que alguém com uma crítica tão enfática à psicanálise acredite nos efeitos benéficos da meditação, mesmo da MBSR, que interage com a psicologia e a psiquiatria.

Mas não é antinômico. Não mesmo.

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