A ditadura da tecnologia. Artigo de Luigi Zoja

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13 Novembro 2012

Na complexidade das técnicas e da sociedade urbana, a experiência do próximo e da proximidade parece desaparecer para sempre.

A opinião é do psicanalista e escritor italiano Luigi Zoja, que estudou no Carl Gustav Jung Institute de Zurique. Foi presidente da Associação Internacional de Psicologia Analítica. O artigo foi publicado no jornal L'Unità, 08-11-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Através de um percurso subterrâneo, universal e transversal, que investe contra todos os povos com a hipermodernização, impôs-se sobre nós uma nova "ditadura": uma hegemonia autoritária não de certas formas políticas, mas sim de um universo econômico e tecnológico que não tem precedentes em toda a história humana. Ele perturba e deforma os nossos afetos e as nossas relações com os outros, com as nossas emoções e com o controle do nosso sistema neuronal.

A crítica ao consumismo exasperado nos diz há muito tempo que, adquirindo objetos e progresso, a nossa atenção se desviou dos homens, vertendo-se, depois, sobre as aquisições e as coisas. Nos últimos anos, porém, também apreendemos que a técnica gera (por exemplo, através da internet ou dos telefones celulares) relações antes inexistentes com aqueles que estão longe, mas em troca leva consigo o afeto por aqueles que estão perto e nos desvincula das responsabilidades que isso comportava.

Portanto, são duas as causas – profundas e irreversíveis – que concorrem para o atual estranhamento. A primeiro é o anonimato da civilização de massa. Até um século atrás, a grande maioria da população mundial (bem mais do que 90%) era agrícola: uma condição dominante também nos países já então mais ricos, na América do Norte e na Europa centro-setentrional.

A economia e a sociedade eram fortemente locais: a maioria das pessoas viviam no mesmo lugar por toda a vida (o fascínio ambíguo do serviço militar estava em grande parte em ser um dos poucos eventos que podiam levar longe). E a maior parte da população conhecia apenas 200, no máximo 300 pessoas em toda a vida. O animal humano, além disso, evoluiu durante grande parte da sua história como nômade que vagava em pequenos grupos sobre territórios quase vazios.  O seu sistema nervoso, portanto, está predisposto para reconhecer, memorizar e acolher um número bem restrito de rostos.

A vida na cidade

Mas, desde 2008, disseram as Nações Unidas, mais da metade da população terrestre vive em cidades. É uma reviravolta sem precedentes, mais importante do que a passagem da hegemonia mundial dos Estados Unidos para a China. A China também será uma breve aparição no palco das épocas: outros protagonistas irão subir nele e descerão, como aconteceu com o Império Persa e com o de Alexandre, com Roma, com a Espanha e com a Inglaterra. A cidade, ao invés, diz o Alto Comissariado das Nações Unidas, não cederá mais o primado à campo.

Nas cidades, o indivíduo médio, que sai à rua, usa o transporte público, visita escritórios e supermercados, vê milhares de novos rostos anônimos: não durante a vida, mas todos os dias. O seu sistema nervoso, os seus mecanismos (animais e naturais) de alarme diante dos desconhecidos estão constantemente mobilizados: ele não se dá conta disso só porque se trata de uma condição que não é particular, mas permanente.

Ele vive em um estado (insinuante, inconsciente) de estresse e de desconfiança contínuos. Não sorri mais reconhecendo os rostos, como faziam os seus antepassados na aldeia. Para reconhecer rostos, ele liga a televisão. Os sorrisos, artificiais e anônimos, de atores e apresentadores com os quais nunca se encontrou, lhe são conhecidos: são a sua família, tecnológica e pré-confeccionada.

O segundo fator de distância e de perda do próximo é de fato a tecnologia. A tecnologia tem feito coisas maravilhosas que multiplicam as possibilidades de interagir com os outros. Há muito tempo, porém, foi disparado o alarme: os seres humanos não são capazes de usá-la, tornam-se como que dependentes de uma droga e perdem a capacidade de se comunicar, ao invés de enriquecê-la. A esse fenômeno foi dado o nome de "Paradoxo da Internet".

Mais recentemente, publicações científicas nos forneceram dados concretos. Nos 20 anos que vão de 1987 a 2007, as horas diárias que o cidadão inglês médio passa na frente de meios de comunicação eletrônicos passaram de 4 para cerca de 8. Ao mesmo tempo, as horas passadas comunicando com pessoas reais caiu de 6 para pouco mais de 2.

Tudo isso é mórbido em todos os sentidos. É injusto, sugere-nos instintivamente toda moral secular ou religiosa. É prejudicial psicologicamente, como tentei argumentar em um pequeno ensaio sobre a Morte del prossimo. Mas também é tão natural para o nosso corpo a ponto de constituir um grave fator patogênico: a substituição dos contatos sociais pelos eletrônicos pode, por exemplo, favorecer a alterações nos leucócitos e diminuir a resistência aos tumores.

Segundo a Escola de Medicina de Harvard, nas pessoas com mais de 50 anos socialmente isoladas, a perda de memória avança a uma velocidade dupla com relação às integradas. E assim por diante.

Em tais condições, nos acostumamos cada vez mais a recitar as relações humanas e afetivas, assim como os meios de comunicação as oferecem, já confeccionadas, ao invés de realmente nos relacionarmos. Tendo observado a aceleração desses fenômenos nas últimas décadas, tendo medido as suas consequências devastadoras sobre os próprios pacientes, um psicanalista – como eu o sou de profissão – se permite sair do seu âmbito e dirigir uma pergunta a teólogos e filósofos.

Durante milênios, um duplo mandamento regeu a moral judaico-cristã: ame a Deus e ame o próximo como a si mesmo. No fim do século XIX, Nietzsche anunciou: Deus está morto. Passado também o século XX, não é hora de completar essa afirmação? Morreu também o próximo. Perdemos também a segunda parte do mandamento porque não temos mais experiência de uma verdade que nos era transmitida pela tradição judaico-cristã. Tanto em hebraico no Levítico, quanto em grego nos Evangelhos, próximo significava: o seu vizinho, aquele que você vê, ouve, pode tocar. Na complexidade das técnicas e da sociedade urbana, a experiência da proximidade parece desaparecer para sempre.

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