Por: André | 09 Novembro 2012
“Oxalá, nos quatro próximos anos, Obama retenha a lição que aprendeu durante sua última campanha eleitoral. Oxalá, que cada dia, antes de começar sua árdua jornada na Casa Branca, se ponha a percorrer, pelo menos na sua mente e talvez no seu coração, as milhões de portas que o estão esperando, que se abriram como uma doce tempestade durante estas eleições e que voltarão a se abrir uma ou outra vez para dar-lhe as boas-vindas de vento e sol, caso estiver disposto a viajar com seus concidadãos para um mundo mais justo e belo”.
A reflexão é de Ariel Dorfman, escritor chileno, e está publicada no jornal argentino Página/12, 08-11-2012. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
São muitos os comentaristas que garantem que a reeleição de Barack Obama se deveu ao Frankenstorm, o furacão que açoitou a Costa Leste dos Estados Unidos uma semana antes das eleições. E é certo que a megatempestade atormentou Romney ao mesmo tempo que infligia dor a milhões de norte-americanos: o tema político do dia deixou de ser a fraca recuperação econômica norte-americana e passou a se centrar no papel que o governo deve e pode ter diante de uma crise gigantesca (o oposto da tese dos republicanos, que querem privatizar tudo, inclusive a ajuda nas catástrofes), e permitiu ao presidente mostrar sua liderança.
Mas a verdadeira tempestade que salvou Obama foi outra. Com o risco de parecer lírico e até utópico, permito-me declarar que foram as pessoas, uma tempestade humana, uma enxurrada de milhões de ativistas, que permitiram a vitória do presidente afroamericano.
Minha própria limitada experiência comprova o que estou dizendo.
Durante intermináveis horas no dia da votação, minha esposa Angélica e eu fizemos um modesto trabalho eleitoral em Durham, Carolina do Norte, cidade em que moramos. Cabia a nós percorrer, com um vento polar contrário e uma incessante ameaça de chuvisco, cerca de 40 apartamentos de baixa renda, espalhados ao longo de vários hectares, tratando de assegurar que seus habitantes – que já haviam sido previamente contatados duas vezes – acorressem nesse dia às urnas. Nos certificamos de quem haviam votado (a maioria), deixamos material eleitoral nas casas onde ninguém respondia e, num caso, conseguimos transporte para uma mulher que não iria votar, mas que, finalmente, o fez por Obama.
Poder-se-ia pensar que tal resultado, um solitário voto novo depois de horas de impenitente trabalho, não valeu a pena. Mas se nós não tivéssemos feito essa peregrinação, aquele voto teria se perdido, aquela voz de apoio a Obama, aquele repúdio das mentiras e arrogância de Romney. Uma situação similar à nossa, o resgate de um eleitor e outro e mais outro, estava se dando em milhares e milhares de lugares em Ohio, Virginia, Nevada, Colorado, Iowa, Wisconsin, New Hampshire, os estados em que Obama ganhou, apesar de uma propaganda milionária e uma situação econômica precária. Foram pequenos esforços como o nosso, multiplicados e repetidos e repisados em uma réplica quase infinita, que asseguraram a vitória.
Enquanto íamos com Angélica de uma porta a outra, subindo e descendo escadas e cruzando, desolados, paisagens entre os prédios de apartamentos, recordávamos outros “porta a porta” de que havíamos participado: as campanhas de Salvador Allende, entre 1958 e 1973; a luta contra o medo durante a ditadura de Pinochet que culminou no plebiscito de 1988; o penoso restabelecimento da democracia no Chile, em 1990. Sobretudo, nos colocamos a rememorar – uma boa maneira de combater o frio da Carolina do Norte – uma noite em agosto de 1964 que passamos na casa do próprio Allende, convidados por suas filhas, Tati e Isabel, para confeccionar listas de eleitores que teriam que ser transportadas de localidades do sul para seus lugares de votação no norte (e vice-versa), identificando aqueles que necessitavam de ajuda para poder votar. Na madrugada, Allende entrou e saudou o grupo de jovens, espalhados com anotações e papéis no tapete debaixo de quadros de Matta e Guayasamín e uma gravura de Miró.
- Olá, rapazes – nos disse. Vejo que estão ocupados, assim que não atrapalhá-los.
Acabava de percorrer povoados e campos, com o pó do Chile em seus sapatos e cansaço nos olhos, um cansaço que, contudo, reluzia de alegria, sabendo que tantos jovens como nós nos desdobrávamos por sua vitória. Nesse ano, não ganhou. Mas não foi um trabalho em vão: seis anos mais tarde, em 1970, chegou à Presidência.
E agora estamos, Angélica e eu, novamente dando o que podíamos em um mundo onde Allende estava morto e Barack Obama, com todos os seus erros e imperfeições, representava a mínima esperança de um mundo melhor. Assegurando, como tantas décadas atrás, que um voto a mais sempre é importante, sempre importa a pequena voz de cada pequeno ser humano.
Se Obama falhou em algo no seu primeiro mandato, foi esquecer demais essas vozes, confiar em que era possível fazer mudanças significativas em um país regido por uma plutocracia e paralisado por um sistema político disfuncional sem recorrer ao poder persuasivo do povo.
Oxalá, nos quatro próximos anos, Obama retenha a lição que aprendeu durante sua última campanha eleitoral. Oxalá, que cada dia, antes de começar sua árdua jornada na Casa Branca, se ponha a percorrer, pelo menos na sua mente e talvez no seu coração, as milhões de portas que o estão esperando, que se abriram como uma doce tempestade durante estas eleições e que voltarão a se abrir uma ou outra vez para dar-lhe as boas-vindas de vento e sol, caso estiver disposto a viajar com seus concidadãos para um mundo mais justo e belo.
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A tempestade de Obama - Instituto Humanitas Unisinos - IHU