O que ensina a lição dos santos loucos. Artigo de Enzo Bianchi

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16 Outubro 2012

Dos estilistas sírios do século IV a São Basílio de Moscou, a história da Igreja é rica em "apaixonados loucos" de Jesus. Pessoas fora da norma, que tem muito a nos dizer.

A opinião é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal La Stampa, 30-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Na história do monaquismo, alguns homens e mulheres caracterizaram o seu estilo de vida asceta através de formas de abdicação à normalidade, de loucura aos olhos dos seus contemporâneos. Não por protagonismo excêntrico, mas sim para opor a loucura da cruz àqueles que, dessa cruz, fizeram um lábaro, uma insígnia triunfante, um emblema do imperium eclesial sobre o mundo.

Às vezes, em uma Igreja feita de sábios, de intelectuais, de arcontes, de instituições ordenadas e alinhadas, não foi possível testemunhar a "loucura da cruz" de que fala o apóstolo Paulo senão assumindo a forma da loucura, do excesso, da não normalidade. Essas testemunhas gostavam de se definir como "simples, idiotas, loucos", e escolhiam confundir "o que é" através da fraqueza com "o que não é" (cf. Primeira Carta aos Coríntios 1, 28) em nome de um amor louco pelo Crucificado, pelo Desprezado, pelo Alienado até a morte, e morte de cruz.

O corpo desses homens e dessas mulheres, "irmão asno", revestindo a forma da loucura, tornou-se sinal eficaz daquela estultice de Deus que confunde a sabedoria humana: às vezes, despiram-se nus, outras vezes mostraram um excesso de extravagância ou se misturaram com os transgressores da ordem estabelecida, tornaram-se familiares aos animais, assumiram a forma do pecador, preferindo morar nos prostíbulos ao invés das colunas das igrejas repletas de cristãos hipócritas e formalistas...

Aquilo que outros apaixonados loucos de Cristo entregaram aos irmãos através dos escritos e da pregação, eles o imprimiram no próprio corpo, colocando em cena um drama e vivendo uma mímica somática capaz de transmitir uma mensagem eficaz. Desde o século IV, no deserto da Síria, aparecem os loucos estilitas, autoconfinados em cima de uma coluna, e os dendritos, que viviam em simbiose com as árvores, como braços içados ao céu. O mundo greco-bizantino conheceu os "loucos", assim como o mundo russo viu aparecer, séculos depois, os "loucos": imagens do Crucificado, esses vagabundos, esquecidos de si mesmos, desprezados pelas pessoas comuns, recordaram a "loucura da cruz" a uma Igreja bem instalada entre os poderosos e os sábios deste mundo.

Mas também no Ocidente, apesar do direito romano e da prudente legislação eclesiástica que se tornavam atentos ao "princípio das realidades e do senso comum", não faltaram os loucos em Cristo: essa insânia evangélica conseguiu até influenciar um santo como Inácio de Loyola, que definia a sua companhia de uma "sociedade de tolos e de professantes da tolice", sem esquecer de Francisco de Assis, que reiterava constantemente a sua qualidade de pazzus in Christo, simplex et idiota.

Mas é no Oriente cristão que a figura dos loucos em Cristo foi de tal forma frequente que originou uma verdadeira categoria de santidade: pessoas definidas nos calendários litúrgicos como "aqueles que, impulsionados pelo amor de Deus e do próximo, adotaram uma forma de piedade cristã que se chama de loucura por amor a Cristo. Estes renunciam voluntariamente não somente às comodidades e aos bens da vida terrena, às vantagens da vida social, mas também aceitam, ainda mais, assumir a aparência de um louco que desconhece as regras da convivência e do pudor, e muitas vezes se permite cometer ações escandalosas. Estes não temem dizer a verdade aos poderosos deste mundo, acusando aqueles que esqueceram a justiça de Deus e consolando aqueles que, embora desprezados, temem a Deus com toda a humildade".

Como não citar uma figura entre tantas, a de São Basílio de Moscou, que, na sua aparente loucura, protestou contra a crueldade de Ivan, o Terrível, oferecendo-lhe como refeição carne crua em tempo de Quaresma? À recusa escandalizada, o louco em Cristo perguntou ao czar como era possível que ele tivesse escrúpulos para comer carne de animais durante a Quaresma, justamente ele que, em todas as estações do ano, não hesitava em levar à morte cristãos e pessoas inocentes.

Além disso, basta ler O Idiota, de Dostoiévski, ou O Mestre e Margarida, de Bulgakov, para entender como a figura do "louco" formou toda a cultura russa, até os loucos por Cristo descritos em As minhas missões na Sibéria, de Spiridon, capelão nos gulag czaristas no início do século XX.

Nem a essa santidade particular faltam referências a figuras bíblicas decisivas: o rei Davi não só se fingiu de louco entoando um salmo: "Eu sou louco no Senhor, quem é humilde ouça e se alegre...", mas, diante da arca da presença de Deus, abandonou-se nu em uma dança desenfreada, louco de alegria por Deus. Até mesmo Jesus foi considerado "fora de si" pelos seus familiares que queriam deter a sua pregação, considerada incômoda por causa das multidões que ele conseguia entusiasmar (cf. Marcos 3, 20-21). E o que dizer de São Paulo que, em várias ocasiões, exortava os cristãos de Corinto a suportar a sua loucura e a considerá-lo também um louco, até confessar abertamente: "Sim, tornei-me louco!".

Para além de afirmações dogmáticas e confissões de fé ditadas por uma racionalidade impecável, esses homens e essas mulheres viveram o impulso extremo da fé, vivendo constantemente voltados para o Cristo crucificado, o único "sábio" que quiseram conhecer nessa vida.

Doentes mentais? Talvez. Certamente, doentes de Deus. Ibn Arabi, o grande místico sufi podia dizer – talvez justamente por ter encontrado alguns desses loucos: "Aquele cuja doença é Jesus não se curará jamais!". Jesus não disse, talvez, que veio "para trazer fogo à terra"? Esses loucos deixaram que esse fogo queimasse até consumir a sabedoria racional daqueles que se consideram sábios. Somos capazes de ouvir o seu riso de advertência?

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