“Temos que repensar a universidade”. Entrevista com Michael Burawoy

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Por: André | 08 Agosto 2012

Burawoy defende que, em nível mundial, a universidade parece “ter deixado de ser um bem público para passar a ser um bem privado que deve se autofinanciar”, motivo pelo qual perde legitimidade. Valoriza como “um conjunto único no mundo” o sistema público argentino.

“Temos que repensar o significado da universidade pública. A questão não é apenas quem tem acesso à universidade, nem quanto custa, mas antes que responsabilidade assume diante da sociedade, que diálogo pode construir com os diferentes atores públicos”. A frase é do presidente da Associação Internacional de Sociologia (ISA), Michael Burawoy, que visitou Buenos Aires para participar do Fórum Internacional de Sociologia. Britânico e marxista, residente nos Estados Unidos e professor da Universidade de Berkeley, Burawoy mantém um blog intitulado “Universidade em crise”, que serviu também como título para a conferência em um seminário da Untref antes de conversar com Página/12.

A entrevista é de Agustín Saavedra e está publicada no jornal argentino Página/12, 07-08-2012. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

A que se refere quando fala de crise na universidade?

Primeiramente, devo dizer que não creio que as universidades argentinas estejam em crise. Estive recentemente no Chile, e poderia afirmar isso nesse país, mas não necessariamente na Argentina. Há quatro aspectos diferentes, ao menos desde um ponto de vista exterior, sobre a universidade argentina. Em princípio, o sistema público domina totalmente; segundo, o ingresso é aberto; terceiro, é basicamente gratuito; quarto, há eleições democráticas para a sua administração. Entendo que estes pontos nunca se dão de modo acabado, mas ao menos à primeira vista é um conjunto único no mundo e um bom ponto de referência para avaliar e entender outros sistemas de educação superior.

Outros sistemas que, pelo que parece, estão em crise. A que se refere com isso?

Há quatro crises que afetam as universidades no mundo, embora em graus diferentes segundo os lugares. A primeira é uma crise fiscal. Em quase todo o mundo a universidade parece ter deixado de ser um bem público para passar a ser um bem privado que deve se autofinanciar. Busca-se obter dinheiro dos estudantes. Na Inglaterra pagam cerca de 10.000 libras por ano. No Chile, obviamente, os protestos têm a ver com isso. Também nos Estados Unidos, na universidade onde trabalho, aumentaram as cotas três vezes nos últimos 10 anos. Outra forma de obter dinheiro é através de doações de gente rica, e certamente várias universidades têm êxito nisto. Mas a outra grande fonte, na realidade, é a pesquisa: vende-se o conhecimento. Para além de com quem fica o dinheiro, a luta pelo patenteamento e pelos direitos de propriedade intelectual... o certo é que a venda do conhecimento transformou-se numa fonte de ingresso crescente. A consequência é que só as disciplinas que geram dinheiro se tornam importantes, como medicina, biologia, engenharia, etc., ao passo que as ciências sociais e humanas têm grandes dificuldades para sobreviver.

Quais são as outras três crises que observa?

Temos também uma crise de governo nas universidades. A pergunta aqui é se vamos construir universidades como corporações, que trabalhem como multinacionais, ou se vamos continuar com o antigo sistema colegiado, onde as faculdades fazem parte da administração. É uma disputa entre duas visões, e por enquanto o modelo corporativo é quem está ganhando. Por isso, temos cada vez mais administradores vendendo a universidade aos estudantes e ao mercado. A terceira crise que localizo é a que chamo crise de legitimidade. Não bem a universidade se converte em um bem privado, pelo qual temos que pagar para entrar, não bem perde sua autonomia vendendo-se às corporações, seu apoio público diminui, cai sua legitimidade. Depois temos a quarta crise, a de identidade. Professores, estudantes, administradores, começam a se perguntar que significa a universidade, e, de modo geral, tendem a confundir o que na verdade é o verdadeiro papel que ocupa na sociedade. Estas quatro crises, evidentemente, estão interrelacionadas.

Que expressões deste processo encontra na América Latina?

No Chile, por exemplo, crescem as universidades privadas, assim como as cotas e os protestos estudantis. O sistema universitário chileno tende a ser bastante elitista, e tem uma particularidade: quase nenhum estudante trabalha enquanto estuda. As famílias fazem empréstimos, por isso os protestos estudantis são tão interessantes e incomuns. Eles são apoiados pelos pais, pelos avós, por toda a família, algo insólito para a Europa. Nos Estados Unidos os estudantes fazem empréstimos para pagar suas cotas universitárias, mas trabalham, e assumem responsabilidades para pagar as dívidas. A lógica é individualista, é o aluno que paga o empréstimo, e não a família. Mais, quando temos uma crise econômica e os estudantes vão aos protestos, as pessoas lhes dizem: “vocês que protestam são mais ricos que nós”. De modo que, na realidade, o público em geral não costuma estar a favor dos protestos estudantis. É o oposto do que acontece no Chile. E aqui na Argentina o assombroso é que ainda mantenham a educação pública. É um milagre, quero dizer, tem seus problemas, mas não deixa de ser assombroso. Parece uma forma extrema do antigo modelo de educação pública.

O que a universidade pode fazer para se contrapor a este processo de crise que descreve?

Há dois conjuntos de pressões exteriores que as universidades devem enfrentar. O primeiro é a mercantilização e a pressão para obter dinheiro em troca da produção de conhecimento. O segundo é a importância crescente dos rankings globais. Começaram na China. A Universidade de Xangai queria avaliar as universidades chinesas comparando-as com as americanas, porque supunha que eram as melhores do mundo. E com o tempo a maioria dos países começou a avaliar suas próprias instituições sob o mesmo sistema. O custo deste processo é que os pesquisadores são incentivados a produzir conhecimento em revistas ocidentais, em inglês, enquanto os problemas locais e nacionais se tornam menos importantes, e até o enfoque das questões começa a ser distorcido, porque a pesquisa deve se situar na forma como os Estados Unidos ou a Europa entendem os problemas. Assim, o capitalismo, atualmente, tem um sistema de ranking, e sabe, com base nisso, em que universidades investir. Por isso, todos os países querem ter uma ou duas universidades entre os primeiros lugares.

Aqui não se presta muita atenção aos rankings mundiais de universidades...

Acreditas seriamente que não? Os professores são incentivados e obtêm mais pontos se publicam em uma revista em inglês, inclusive na Argentina, estou certo disso. Há rankings na América Latina também, e creio que os reitores das universidades estão ciosos para saber em que lugar aparecem. Onde aparece a UBA?, pergunta-se o seu reitor, onde aparece La Plata?, e se competem entre si no interior do país. É uma forma maliciosa de penetrar nos sistemas de educação.

E diante destas pressões exteriores, é possível construir modelos alternativos de incentivo e de produção?

Bom, será preciso ver se é possível criar modelos de discussão crítica nas universidades. Pode uma universidade constituir entre suas faculdades, estudantes e pesquisadores uma comunidade onde se discuta coletivamente o que é a universidade e qual é o seu lugar na sociedade? Os acadêmicos costumam ser muito competitivos e individualistas.

Que papel tem a sociologia em introduzir esta discussão?

Depende do que se entende por um sociólogo. Do meu ponto de vista, um cientista social vincula experiências micro com parâmetros macro desde a perspectiva da sociedade civil. Os economistas, ao contrário, têm como ponto de partida a expansão do mercado. Os cientistas políticos o fazem desde a consolidação do Estado e do poder. Creio, portanto, que os sociólogos têm um lugar na constituição da universidade pública assim como a entendo, porque a universidade tem que ser capaz de entabular um diálogo com a sociedade civil, não apenas com o Estado, e não apenas com o mercado.

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