Em regimes autoritários não há crime político, e sim direito de resistência

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Por: Luciano Gallas | 25 Novembro 2013

“O crime político só pode ser considerado como tal se praticado contra um estado legítimo. Se o regime é autoritário, o ato praticado é direito de resistência. Portanto, os presos políticos brasileiros não praticaram crime político. Eventualmente, praticaram excesso”, afirma o professor José Carlos Moreira da Silva Filho, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS. O docente ministrou a palestra O direito e a memória no Brasil a partir da Constituição Federal de 1988, atividade integrante da programação do evento Constituição 25 Anos: República, Democracia e Cidadania, na noite de 12-11-2013, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “O direito à verdade basicamente significa o acesso às informações públicas. Não se quer produzir uma verdade nacional. O direito à verdade investiga, por exemplo, se a pessoa foi morta ou se suicidou. A interpretação deste fato já é outra coisa. Há em campo uma batalha hermenêutica, de ressignificação dos fatos e das pessoas”, pondera.

             Fotos: Luciano Gallas

Conforme o docente, esta batalha hermenêutica resulta em duas interpretações principais e opostas em disputa: uma delas, defendida pelos agentes da repressão e seus representantes, entende a anistia como política do esquecimento, enquanto a outra, representativa das vítimas do regime militar e das organizações de direitos humanos, a identifica como memória. “No Brasil, o movimento pela anistia significou, em primeiro plano, mobilização, conquista, participação popular. Foi o principal movimento contra a ditadura”, enfatiza José Carlos Moreira. “A bandeira de luta não era anistia aos torturadores. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal dizia que a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] queria restringir a anistia e que a sociedade clamava por uma anistia ampla”, completa.

O movimento pela anistia foi a base de sustentação do processo de redemocratização do país, pelo menos no que se refere à sociedade civil. Entretanto, outros fatores colaboraram para a redemocratização. Entre eles, José Carlos Moreira cita o surgimento de um novo sindicalismo na região do ABCD paulista, a presença de Jimmy Carter na presidência dos Estados Unidos entre 1977 e 1981 - Carter se encontrou com o general Ernesto Geisel, que exerceu o cargo de presidente durante o regime militar, para influenciá-lo a realizar a abertura política (o que atendia aos interesses de implantação do projeto neoliberal, baseado na circulação livre do capital e da informação, liderado pelos EUA) - e a cisão existente entre os militares brasileiros, parte dos quais pretendia realizar a abertura para manter um controle possível sobre o país, enquanto outra parte tinha por objetivo adiar o processo.

Planejamento e controle

A Assembleia Nacional Constituinte que iria elaborar a Constituição Federal de 1988 foi convocada por meio da Emenda Constitucional nº 26, de novembro de 1985, promulgada pelas mesas diretoras da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. O congresso constituinte foi eleito em 1986, embora contasse também com a presença de senadores biônicos em pleno cumprimento de seus mandatos. “Nenhuma constituição vai fazer uma ruptura absoluta. Certos aspectos permanecem. Assim, a Constituição Federal de 1988 causou rupturas, mas também causou continuidades", avalia José Carlos Moreira, lembrando que a constituição anterior, de 1967, alterada em 1969 pelos militares, foi planejada para ser controlada. "As políticas públicas e toda ação política correm o risco de ser pervertidas. A política está permeada de conflitos. Isso vale também para qualquer norma jurídica”, destaca o docente. Nesta linha, temas como reforma agrária, segurança e forças armadas foram interditados nos debates que levaram à elaboração da Constituição de 1988.

José Carlos Moreira enfatiza que a constituição elaborada em 1967/1969 pelo regime militar para legalizar e institucionalizar o próprio regime, e que ainda estava vigente no início do processo de redemocratização, previa que, na ausência do presidente da República, cabia ao presidente do Congresso Nacional assumir o cargo, e não ao vice-presidente da República. Quando da morte do presidente recém eleito Tancredo Neves, em abril de 1985, a presidência do Congresso Nacional era exercida por Ulysses Guimarães. Entretanto, “uma decisão militar levou José Sarney ao cargo. Ulysses Guimarães abriu mão da disputa para não comprometer o processo de redemocratização”.

 

Desigualdade social

“A injustiça social não foi instituída pela ditadura, mas as forças de segurança tiveram um papel preponderante no seu crescimento. Elas levantaram-se contra grupos de mobilização, sindicatos, partidos de esquerda. A região do Araguaia virou um campo de concentração na selva [durante o regime militar]. Os camponeses que sobreviveram tiveram que deixar suas terras sem levar nada. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão. A presença militar no processo político brasileiro é constante”, analisa José Carlos Moreira. Ele lembra que antes mesmo do golpe militar de abril de 1964 já havia conversas, arquivadas na CIA e no FBI, entre o então presidente estadunidense John Fitzgerald Kennedy (governou entre janeiro de 1961 e novembro de 1963) e diplomatas do país, as quais demonstravam uma articulação com os militares brasileiros para derrubar o presidente brasileiro João Goulart (Jango) e colocar Castelo Branco no poder.

Militarização da polícia

"O Brasil tem ainda hoje as forças de segurança mais letais da América Latina e muito desta letalidade aumentou durante a ditadura, que capilarizou práticas e deu uma concepção doutrinária à ação. A Polícia Civil encampou uma lógica hierarquizada e já anteriormente praticava suas violências/torturas. O caso brasileiro é crônico: as forças de segurança têm uma prática brutal, são treinadas para isso, possuem um sistema voltado para isso, e esta situação não foi modificada com o passar do tempo. Há uma cultura de insubordinação das foças armadas no Brasil e também das forças de segurança. Não há transparência, não há responsabilização, o que há é uma visão distorcida do combate à criminalidade. Muitos dos agentes são favoráveis ao uso da tortura como conduta de investigação. São necessárias reformas do judiciário, das forças armadas, das forças de segurança. Temos que debater a desmilitarizaçã0o das polícias”, reitera José Carlos Moreira.

Reparação moral

“A Constituição Federal de 1988 prevê anistia a quem foi perseguido político e isso inclui a possibilidade de reparação. As duas ideias, anistia e reparação, estão atreladas. Mas a reparação não é somente econômica, é também moral. Durante o processo jurídico da anistia, há um ato solene de pedido de desculpas pelo Estado brasileiro", informa José Carlos Moreira, para quem a anistia está atrelada à questão da memória. Ele declara que existem, inclusive, as anistias condicionadas, em que o agente repressor só é anistiado se colaborar na divulgação do crime do qual participou. A divulgação funcionaria então como medida de prevenção à prática de crimes semelhantes.

Quem é José Carlos Moreira da Silva Filho

José Carlos Moreira da Silva Filho possui mestrado em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e doutorado em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS e da Faculdade de Direito da mesma instituição, além de conselheiro da Comissão de Anistia, vinculada ao Ministério da Justiça.

(Por Luciano Gallas)

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