A volta de Rousseau

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09 Janeiro 2013

Se Rousseau, um dos artífices mais radicais da democracia moderna e da Revolução Francesa, reaparecesse hoje, daria de cara com multidões enraivecidas ocupando ruas e praças de vários países da Europa. A julgar por seus escritos e reflexões sobre a participação popular, é possível apostar que o pensador aplaudiria aqueles que, na Espanha, na Grécia e em Portugal reagem vigorosamente à maior crise política e econômica do continente em décadas.

A entrevista é de André Luiz Barros e publicada no jornal Valor, 04-01-2013

Por outro lado, é igualmente provável que ele logo passasse a se preocupar com os rumos da democracia que ajudou a desenvolver no século XVIII. O crescimento paulatino, mas constante, dos partidos da extrema-direita, como o grego Aurora Dourada, atrairia a atenção e os temores de Rousseau.

Esses dois momentos são uma forma de resumir o que pensa Alain Grosrichard, presidente da Sociedade Jean-Jacques Rousseau, guardiã dos originais do filósofo, em Genebra. Grosrichard tem o privilégio - e a angústia - de analisar a crise europeia pela lente do autor de "O Contrato Social" (1762).

Grosrichard se tornou célebre nos anos 1970 por trabalhos em que, partindo da obra de Rousseau, interrogava até mesmo questões psicanalíticas. Hoje, participa da nova edição das obras completas do filósofo pela tradicional editora francesa Garnier. Essa coleção traz, pela primeira vez, os textos em ordem cronológica. Muitos desses escritos são inéditos, a incluir os de botânica, as partituras e a correspondência. A edição é dirigida por Jacques Berchtold, François Jacob e Yannick Séité e tem colaboração dos brasileiros Luiz Fernando Franklin de Matos e Maria das Graças de Souza, da Universidade de São Paulo (USP), e Maria Constança Pissarra, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

"A ordem cronológica leva a perceber, por exemplo, que, até compor o crucial 'Discurso Sobre as Ciências e as Artes', Rousseau só havia escrito sobre flores e música", diz Grosrichard. Esse texto, de 1750, foi redigido como resposta ao concurso da Academia de Ciências de Dijon, que perguntava "se o avanço da ciência e das artes contribui para melhorar os costumes". Com uma resposta negativa, no contrapé do espírito otimista de seu tempo, Rousseau levou o primeiro prêmio.

"O interesse por Rousseau tem a ver com sua lucidez política: ela é detestável, traiçoeira, injusta, mas não se pode fugir dela", diz

Aluno de Louis Althusser e de Jacques Lacan nos anos 60, Grosrichard visitou o Brasil pela primeira vez em 1971. Foi quando conheceu professores-filósofos leitores de Rousseau, como Bento Prado Jr. (1937-2007). A Sociedade Rousseau acaba de anunciar o lançamento na França e na Suíça de "A Retórica de Rousseau" (no Brasil, editado pela Cosac Naify em 2008), de Prado Jr. O lançamento tomará por base o texto original, que Prado Jr. escreveu em francês, quando morava em Paris - o filósofo foi cassado pela ditadura brasileira e viveu cinco anos na capital francesa.

Grosrichard evoca suas memórias do pensador brasileiro: "Ele escrevia e pensava esplendorosamente bem. Aliava rigor e elegância. E muito humor, sempre com sua gravata-borboleta e disposto a continuar conversas no bar". Lembrando-se de professores como Luiz Roberto Salinas (1937-1987), também cassado pela ditadura e autor de "Rousseau - Da Teoria à Prática" (1976), Grosrichard diz que achava os debates paulistas da época mais inflamados até do que os parisienses. "As discussões eram mais aguerridas no Brasil. Havia althusserianos e antialthusserianos ferozes, havia os defensores de Marx, de [Gilles] Deleuze, de [Michel] Foucault, de [Jacques] Derrida, de Lacan. Fiquei impressionado. Parecia mais vital vencer um debate aqui do que lá", relata.

Grosrichard é autor de "Structure du Sérail" (Estrutura do harém), de 1979, visto como leitura alternativa a "Orientalismo" (1978), de Edward Saïd, como análise da posição do chamado "Ocidente", europeu, cristão e branco, em relação a seu antípoda cultural, o "Oriente" - termo usado pelos europeus para se referir principalmente ao mundo árabe e muçulmano. Para Grosrichard, é preciso ler as obras literárias de Rousseau para poder entender certos aspectos da formação daquilo que ficou conhecido como "sujeito ocidental".

"O livro 'Emílio, ou Da Educação' [1762] trouxe a ideia completamente nova de que os detalhes da infância ajudam a mapear a estrutura emocional do adulto", afirma. "Esse tema retorna nas 'Confissões' [1770]. E isso simplesmente tornou possível a obra de [Sigmund] Freud." Para Grosrichard, obras como o romance "A Nova Heloísa" (1761) são joias retóricas que ajudam a compreender a formação da obra política desse artífice da democracia de matriz europeia a partir do século XVIII.

"Há um novo interesse dos jovens por esse romance, o que me surpreende", diz. Isso ocorre não apenas para celebrar os 300 anos do "cidadão de Genebra" - que foi festejado em seminários, congressos, concertos e lançamentos mundo afora ao longo do ano passado -, mas também para tentar diagnosticar o momento europeu e mundial da atualidade.

"O interesse por Rousseau tem a ver com sua lucidez política: ela é detestável, traiçoeira, injusta, mas não se pode fugir dela", diz, chamando de vulgarizadores de Rousseau todos aqueles que sonharam em largar a "sujeira" da política real. "Ele só foi utópico na ficção. Na obra política, ao contrário, foi realista", afirma esse parisiense de 71 anos que vive entre Paris e Genebra, as duas cidades em cujos salões circulou, sempre um pouco à parte, o "cidadão Jean-Jacques" - como ficou conhecido o filósofo, na época em que os sobrenomes começaram a ser menos importantes do que as ideias e as ações.

Eis a entrevista.

Se Rousseau estivesse vivo, ajudaria a iluminar as contradições e os dilemas de nossa democracia, aparentemente sempre em crise, como agora na Europa?

Nem nos anos seguintes à sua morte a aplicação de seu pensamento foi imediata. No momento e logo depois da Revolução Francesa, os homens de 1789 pensaram bastante sobre como poderiam pôr em prática as ideias do contrato social em um Estado tão grande como a França. Ao definir a "vontade geral", Rousseau supunha que todo o povo pudesse se reunir para votar e deliberar individualmente. Num Estado tão grande como a França do pós-revolução, isso claramente não era possível. Então, os debates foram sobre a representatividade possível, ou seja, a possibilidade de que poucos cidadãos fossem escolhidos para representar todos os demais.

O tema da democracia direta, em comparação com a democracia representativa, já se colocava naquela época e continua se colocando até hoje...

O grande problema foi que a democracia representativa, que era, e continua sendo, a única solução realista, estava em total contradição com as ideias contidas no "Contrato Social", no qual se lê que ninguém pode conceder a outra pessoa o direito de deliberar em seu nome, pois assim perde imediatamente a liberdade e a responsabilidade como cidadão. Veja o dilema dos homens da revolução, que queriam pôr a democracia em prática. É a um só tempo a vantagem e o inconveniente da democracia. Nenhuma força, nada pode encarnar a democracia de uma vez por todas. Estamos sempre no campo da experiência, da tentativa, da contestação. Se isso é bem decepcionante, é, ao mesmo tempo, inevitável.

Na crise pela qual passa hoje a Europa, as pessoas vão às ruas e tentam praticar uma espécie de democracia direta e imediata. Em países árabes também...

Sim, sim, há tentativas de democracia direta. Quando Ségolène Royal se candidatou à Presidência pelo Partido Socialista [em 2007; ela perdeu para Nicolas Sarkozy, que governou até maio], ela promoveu encontros com milhares de participantes para sugerir ideias, ações possíveis. Era algo ridículo. Na verdade, era uma forma de dizer que era incapaz de escolher um caminho. Vou analisar a crise econômica da Europa a partir da crise política. O grande dilema é que a Europa continua a funcionar sob o princípio da soberania de cada país, mas, ao mesmo tempo, integra-se numa instância superior, única, que tem de tomar decisões para todos os Estados.

E isso, por sinal, está ainda mais distante das ideias do "Contrato Social"...

A Comissão em Bruxelas tem de pôr em prática medidas, independentemente da soberania de cada país. Obviamente, as dificuldades são enormes, pois nenhum membro é soberano e, ao mesmo tempo, certos problemas bastante urgentes simplesmente não conseguem ser resolvidos. Por exemplo, a política fiscal. Ou a situação legal dos estrangeiros. São federalismos, como o Brasil, que vivem sobressaltos nacionalistas.

O nacionalismo reaparece em todas as eleições europeias, quando partidos como o Front National da família Le Pen conseguem votações cada vez mais expressivas...

A cada vez que há um pequeno avanço no sentido da integração europeia, há retrocessos nacionalistas e soberanistas. Vemos, neste momento, a emergência de partidos de direita e de extrema-direita que reivindicam o nacionalismo e são xenófobos. Isso ocorre precisamente porque na Europa Central se exigem medidas duras contra a crise. É o que se passa na Grécia, que chegou à falência total. Então se pede aos europeus que ponham as mãos nos bolsos para ajudá-la. Mas logo as pessoas dizem: "Chega. A gente tem os próprios problemas, a Grécia tem que cuidar dos problemas dela".

O senhor viveu os anos 60 e 70, quando os intelectuais franceses tinham grande influência na vida pública, na mídia. Rousseau foi um dos inventores do intelectual público. Mas onde estão esses intelectuais hoje?

De fato, o século XVIII viu nascer a figura do intelectual público e Rousseau exerceu esse papel, pois representou a consciência pública na qual as pessoas que não estão no poder podem se reconhecer. Era um perfil que incluía a tolerância religiosa, a crítica ao luxo, à riqueza, à injustiça etc. Certamente os filósofos da época das Luzes, como Rousseau, Voltaire, Diderot, Condorcet, podem ser vistos como modelos dos intelectuais que surgiram em torno do Maio de 68. Na verdade, isso começa um pouco antes, com [Jean-Paul] Sartre, que participou de manifestações de causas populares, depois Foucault, Althusser, que foram aquilo que na França é chamado de "maîtres à penser".

É um papel que foi deixado de lado?

Creio que todos esses nomes que citei emergiram porque o mundo, naquela época, era dividido em dois blocos. Era a Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética, com a China de Mao Tsé-tung surgindo como nova força. As pessoas, em especial os jovens, tinham que escolher e se definir ideologicamente. Ou seja, eles se identificavam no nível das ideias, das ideologias, e os intelectuais tinham o papel de elaborar essas ideias e indicar caminhos. Hoje, as pessoas não parecem precisar mais escolher entre ideologias inimigas.

Como se no mundo não houvesse alternativas?

Simplesmente, hoje, as escolhas são feitas entre doutrinas econômicas: é preciso escolher entre keynesianismo ou outra via e, portanto, não se precisa mais de intelectuais para elaborar ideias, visões de mundo. Infelizmente. Talvez isso explique a volta a Rousseau, um Rousseau mais do cuidado de si, que em certo momento se cansou da política, como vejo muita gente hoje se cansar das "trapaças da democracia", do jogo político sempre decepcionante. É o Rousseau do fim da vida, dos "Devaneios do Caminhante Solitário" [1778], livro que deve ser relido. Um Rousseau que buscava responder à pergunta: "Como posso produzir minha felicidade sem trair o que escrevi? Como ser homem sem deixar de ser cidadão?"

Seria unir a vontade de ser feliz com a prática utópica do contrato social?

Sim, mas é preciso dizer que o contrato social não é uma utopia. Rousseau não escreveu a descrição de um Estado ideal, desencarnado, não pensou em algo análogo à "Utopia" [1516], de [Thomas] Morus. A comunidade de Clarens, no romance "A Nova Heloísa" [propriedade rural com funcionamento perfeito], essa sim pode ser vista como uma utopia. Mas o contrato social é uma reflexão com o objetivo de definir os fundamentos legítimos do Estado político. Não é uma projeção ficcional.

Ainda assim, até hoje a imagem de Rousseau é associada à valorização de uma vida bucólica, campestre, utópica...

É claro que, por exemplo, a partir de Maio de 68 há também um certo rousseauísmo vulgarizado, nítido naquelas pessoas que foram morar no campo, se afastaram da vida urbana, como se isso fosse uma solução dos problemas da vida concreta. Quanto a isso, há um trecho crucial do "Emílio". O preceptor vai levar seu discípulo para uma viagem através da Europa, como parte de sua formação.

Antes, porém, faz um discurso com o conteúdo daquilo que virá a se tornar o contrato social. Na volta da viagem, o preceptor pergunta ao menino: "Em qual país você moraria?" Emílio diz: "Em nenhum, pois vi em toda parte a lei servindo o mais forte para oprimir o mais fraco. Nenhum país pratica aquilo que o senhor disse que era justo e racional". O preceptor retruca: "Pois é, essa é a realidade; a política é inexoravelmente injusta". E quando Emílio diz querer se instalar com a mulher no campo, o preceptor diz (cito de memória): "Não, você não pode se fechar na solidão! Você deve algo a seus semelhantes". Isso é a própria antiutopia!

O momento atual de crise na Europa está pondo os governantes contra a parede, pois nenhum consegue manter a popularidade.

Sim, por causa da obrigação de tomar medidas austeras. Veja François Hollande, que construiu seu programa para ganhar as eleições como o inverso perfeito do governo e da imagem de Sarkozy.

Agora que é preciso ter proposições próprias, ele parece improvisar o tempo todo. É claro que há boa vontade dele e do PS [Partido Socialista], mas tudo parece ineficaz. Por exemplo, a luta contra o desemprego. Então sua impopularidade só cresce. Os chefes políticos da Espanha estão muito impopulares. Angela Merkel está sendo obrigada a se mostrar rigorosa e varia entre o rigor e a ideia de ajudar os países em falência, o que significa impopularidade na Alemanha e nos países que a União Europeia ajuda. A Inglaterra sempre tenta se manter à parte, como se a crise não a atingisse. Mas, de fato, a democracia na Europa vive um momento em que os chefes de Estado se mostram impopulares e impotentes.

E como está, nesse contexto, o estado emocional dos europeus?

Há um pessimismo da população. Um exemplo concreto foi a onda de suicídios em grandes empresas, como a [companhia telefônica] Orange. O fenômeno foi creditado a um ambiente de administração interna tirânico. É a ditadura da rentabilidade a todo custo, uma espécie de luta de vida ou morte, vivida pelos participantes como cruel. E o poder de compra está baixando.

E o Brasil nesse cenário?

O Brasil é visto muito positivamente na Europa. Não como um modelo, mas como um país com que se poderá e se deverá contar. Assim como Índia, China, Rússia e África do Sul, claro. Lula tem uma imagem excepcional e Dilma Rousseff começa a construir a dela. Antes só havia notícias esporádicas, de violência nas favelas do Rio, mas hoje é um país mais próximo e aparece positivamente no noticiário.

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