Polícias comunitárias e autodefesas: a vontade-de-vida frente ao estado de exceção como biopolítica de Estado

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Por: Jonas | 10 Fevereiro 2014

“A política dentro de uma comunidade humana é uma atividade que organiza e promove a produção, manutenção e reprodução da vida de seus membros, da vida em comum. Isso é precisamente o que fazem autodefesas e polícias comunitárias, postergar a morte por meio de uma prática política que pretende a manutenção e reprodução da vida, como o locus de um contrapoder, de uma potência, de uma produção de subjetividade que se dá como desassujeitamento a um poder fetichizado (o Estado que se afirma como soberano em sua autoridade autorreferente e não derivada da comunidade política) que deixa morrer”, escreve Oscar Arnulfo de la Torre de Lara, em artigo publicado por Rebelión, 01-02-2014. A tradução é do professor de Antropologia Jurídica da UFPR, Ricardo Prestes Pazello.

Eis o artigo.

“A esperança pertence à vida, é a vida mesma defendendo-se”
(Julio Cortazar)

Há alguns dias, Sabina Berman, em um artigo de análise na revista semanal Processo pôs na boca do Secretário do Interior, Miguel Angel Osorio Chong, uma frase que resulta inquietante, mas que revela uma verdade incontestável: a vocação autoritária do regime e a sujeição da cidadania a um poder fetichizado. A frase a que faço referência é a qualificação de “ridícula e perigosa a demanda dos civis mexicanos para serem considerados acima de tudo seres humanos [...] primeiro seres humanos ávidos por sobreviver e, logo, mexicanos dispostos a morrer pelo país” incorrendo em “alta traição à Pátria”. Isto em alusão aos processos de criação e atuação de autodefesas cidadãs na terra quente de Michoacán e das Polícias Comunitárias de La Montaña e Costa Chica de Guerrero. Em realidade, essa frase posta na boca de Osorio Chong constitui o discurso velado do regime, enquanto que o discurso oficial é o tão apregoado “respeito às leis e às instituições democráticas”, mas, de fato, o que ocorre é que as condições de violência (direta e estrutural) apagam e contradizem impunemente o aspecto normativo da lei ignoram externamente as normas protetoras de direitos humanos e produzem internamente um permanente estado de exceção, mesmo que se afirme que, apesar de tudo, se está aplicando a lei.

Polícias comunitárias e autodefesas cidadãs constituem fenômenos sociais extremamente complexos, cada um com suas determinações e raízes sócio-históricas próprias, as mesmas que são impossíveis de tratar neste artigo. Só basta dizer que as polícias comunitárias atendem a um processo mais amplo e complexo encaminhado à construção da autonomia dos povos indígenas, quer dizer, que responde a um projeto comunitário de autonomia, onde os povos tomam a segurança como uma parte do todo para seu desenvolvimento, enquanto que as autodefesas respondem a uma problemática focada na segurança.

Sem dúvida, sim, se pode afirmar que esses processos têm algo em comum. Essas experiências não só põem em evidencia a vergonhosa corrupção e impunidade institucional, mas também constituem a compensação de um vazio, de uma ausência e uma crise de sentido do Estado, incapaz de dar respostas para a sociedade em seu conjunto. Como afirma Jean Robert, “a ordem do discurso, com as formas de verdade e de poder que costuma fomentar, está em colapso: não só perde credibilidade e legitimidade, mas deixa rapidamente de se referir à realidade na qual a maioria dos cidadãos estamos imersos”. O Estado sobrecarregado já não só não é capaz de garantir o respeito à lei, mas também se tornou promotor da fusão economicamente eficiente do criminal criminoso e do legal, em que os limites entre os territórios do crime e os territórios da lei se misturam intimamente. Desse modo, a legitimidade estatal pretende (desde os últimos seis anos) construir-se por meio de uma política do medo que, hobbesianamente, procura lembrar-nos por que necessitamos do Estado e de suas instituições, em uma tentativa desesperada de manter o princípio de legitimidade e o monopólio da violência ("Protego ergo obligo", dizia Hobbes).

Os conflitos sociais que se vivem no país podem ser vistos de várias perspectivas, não obstante eu ache que a sua análise, em chave biopolítica, lance muitas luzes sobre eles. De modo que, para entender o que se sucede em Michoacán e Guerrero, é necessário empregar uma visão abrangente e analítica das tecnologias de exercício do poder que foram utilizadas no México como uma biopolítica de Estado. Ou seja – como disse Salvador Maldonado Aranda – “de que forma têm sido governados territórios imaginados a partir do poder governamental como insanos, inóspitos e alijados da modernidade mediante técnicas de segurança pública ou militar”. Estes territórios têm sido historicamente estigmatizados, a ponto de se os qualificar como um lugar onde a violência é natural para seus habitantes. Existe um arraigado estereótipo que associa o terracalenteño com o incivilizado, a insurgência (sementeira de guerrilha), a nota vermelha, o narcotráfico e a violência. Trata-se de um estereótipo negativo, descontextualizado e desligado completamente do complexo processo sócio-histórico regional, que produziu um determinado sujeito social ambivalente com a idéia do Estado e da cidadania oficial.

Os territórios da terra quente michoacana e de La Montaña e Costa Chica de Guerrero são regiões onde historicamente o Estado se deixou sentir quase que exclusivamente pela constante presença de forças repressivas, juntamente com as graves condições de marginalidade e o sério quadro de precariedade estrutural no qual sobrevivem amplos setores de sua população, que só podem ser explicados por um histórico vazio ou ausência institucional, ou seja, a ausência de um Estado que garante direitos. Também são inegáveis os sinais que mostram a perda do controle territorial do Estado e um crescente empoderamento do crime organizado em diferentes âmbitos da vida social, política e cultural, em que se apresentam características de um verdadeiro estado de exceção declarado não declarado, e onde a garantia e efetividade dos direitos humanos se reduz a mera retórica. Sem dúvida, essas problemáticas não podem ser reduzidas a uma questão de legalidade/ilegalidade, mas a sua explicação a encontramos no uso da exceção à lei como tecnologia de exercício do poder. De acordo com o filósofo italiano Giorgio Agamben, a exceção à lei não é aleatória nem se produz como situação limite para retornar à ordem e aos bons princípios de democracia e justiça, mas constitui, em realidade, uma biopolítica de Estado.

Maldonado Aranda explica que a corrupção e a impunidade não são práticas que apenas distorcem um Estado de direito ou que sejam um produto “natural” de Estados deficientes ou falidos. Tampouco são práticas e discursos que suspendem a lei ou o direito com o fim de lidar com situações excepcionais e posteriormente retornar à “normatividade”, mas antes fazem parte de certas tecnologias políticas que possibilitam a dominação por meio da exceção à lei através da suspensão do direito e da ameaça da violência. De tal modo que a exceção à lei constitui uma biopolítica de Estado não é aleatória nem produtora de uma situação limite para retornar à ordem e à vida democrática, mas todo o contrário. A suspensão da lei significa que a exceção não é um ato preestabelecido, mas uma vontade do soberano, só porque este encarna a lei, mas ao mesmo tempo se situa fora dela. O fato de que a lei é cancelada para beneficiar particulares (ou delinqüentes), para justificar o exercício da força, condenar ou julgar, e inclusive para sacrificar um indivíduo sem que pareça homicídio, não de uma prática idiossincrática ou cultural; mas tem suas raízes na forma como se construíram e constroem os Estados nacionais em termos da relação entre pessoa, instituições e soberania. A visão culturalista do problema das violências naturaliza a impunidade como um assunto cultural (“o mexicano é corrupto por natureza”), em contraste com experiências históricas da formação dos Estados modernos, onde as relações interpessoais são eclipsadas por dispositivos políticos muito mais eficientes no controle da administração pública.

Esta biopolítica de Estado pode ser analisada trazendo à tona a velha e obscura figura do direito romano resgatada por Agamben, o homo sacer. Esta figura se refere a uma pessoa proscrita que pode morrer ou ser assassinada por qualquer com impunidade, e cuja morte não é eticamente condenável. Segundo Agamben, o paradigma biopolítico moderno é o campo de concentração, não obstante podermos encontrar sua manifestação atual nos cada vez mais amplos processos de exclusão em nossas sociedades no contexto de um neoliberalismo selvagem, que subordina a lógica dos direitos humanos e da autonomia, da autoestima e da responsabilidade dos seres humanos à lógica dos bons negócios, ou como diria Franz Hinkelammert, a uma lógica de eficiência sacrificial que prima pelas relações mercantis sobre a vida humana e sobre o lugar em que ela se desenvolve.

Para compreender a peculiar concepção que Agamben tem da biopolítica, é conveniente começar pela ruptura fundamental que caracteriza a política ocidental desde seu início no mundo ocidental antigo. Agamben alude a essa ruptura pondo em evidência a maneira pela qual os gregos distinguiam entre zoé – a mera vida natural ou vida nua – e bíos – uma forma de vida qualificada, política. Nos Estados modernos, o discurso dos direitos humanos e da cidadania é a forma de sacralizar vida nua [zoé], e a forma de inscrevê-la no direito. Ao teor do discurso dos direitos humanos e da cidadania, o simples nascimento dos seres humanos (enquanto livres, iguais e dotados de direitos inatos) marcaria o fundamento da bíos [vida qualificada]. No entanto, de fato isto não é assim, e a chave de análise biopolítica nos mostra como o estado de exceção, tornado permanente e expresso na guerra [contra o narcotráfico], a limpeza étnica, o genocídio e também o genocídio social, despojam constantemente a vida nua desse estatuto jurídico. De modo que, como diz Agamben, “a sacralidade da vida, que hoje se pretende fazer valer frente ao poder soberano como direito humano fundamental em todos os sentidos, expressa, pelo contrário, em sua própria origem a sujeição da vida a um poder de morte, sua irreparável exposição na relação de abandono”.

Isso é assim porque, como explica o jurista platense Alejandro Medici, “se constitucionaliza a vida como sagrada em forma de direitos, enquanto que nos espaços sociais disciplinares e produtivos se administra biopoliticamente a vida nua. A bíos enquanto vida politicamente qualificada aparece na esfera da circulação como fundada na sacralidade da zoé, ao mesmo tempo em que esta é submetida ao plano da biopolítica e da disciplina a uma administração normalizadora”. O paradoxo que nos mostra Agamben em seu “homo sacer” é que a afirmação política da sacralidade da vida e, ao mesmo tempo, de seu caráter biopoliticamente prescindível, constitui um paradoxo dos direitos humanos, que inicialmente não são mais que a inscrição da vida nua na ordem jurídico-política. Aqui ganha especial vigor a célebre afirmação de Walter Benjamin, quando dizia que “a tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que agora vivemos é na verdade a regra”.

Sem dúvida, também na tradição dos oprimidos a vida busca seu leito. Como bem explicou Enrique Dussel, a vontade-de-vida é a tendência originária dos seres humanos. A vontade-de-viver é a essência positiva, o conteúdo como força, como potência que pode mover, arrastar e impulsionar. Em seu fundamento, a vontade nos empurra a evitar a morte, a postergá-la, a permanecer na vida. Empunhar ou inventar meios de sobrevivência para satisfazer suas necessidades, e poder empunhar, usar, cumprir os meios para a sobrevivência é já o poder. Este é o conteúdo e a motivação do poder, a determinação material fundamental da definição de poder político. Toda ação ou instituição política tem por conteúdo a referência na vida. Por isso Jean Robert nos recorda que em seu significado mais nobre, a política (de polis – cidade) é o interesse que se manifesta em ações cívicas pelo lugar em que se habita. Não há ética, não há política sem enraizamento em um lugar, em uma cidade, em um povo concreto, quer dizer, localizados e únicos. De modo tal que a política dentro de uma comunidade humana é uma atividade que organiza e promove a produção, manutenção e reprodução da vida de seus membros, da vida em comum. Isso é precisamente o que fazem autodefesas e polícias comunitárias, postergar a morte por meio de uma prática política que pretende a manutenção e reprodução da vida, como o locus de um contrapoder, de uma potência, de uma produção de subjetividade que se dá como desassujeitamento a um poder fetichizado (o Estado que se afirma como soberano em sua autoridade autorreferente e não derivada da comunidade política) que deixa morrer.

Estes processos se constroem desde uma atitude crítica às instituições corruptas. Coloca-se um rompimento com a cumplicidade da dominação em nome das instituições (a legalidade vigente como produto de um poder fetichizado) para abrir outras possibilidades de funcionamento institucional, mas não para sua anulação. Trata-se da emergência da vida do ser humano frente a uma lei que não permite viver e uma atuação institucional que deixa morrer.

O iusfilósofo sevilhano Juan Antonio Senent explica – instalado plenamente no pensamento de libertação latino-americano – que a disposição do “sujeito rebelde” frente à lei implica uma liberdade anterior à mesma, quer dizer que sua liberdade não provém de um contrato social baseado no medo e na proteção da propriedade. Este posicionamento permite dessacralizar e relacionar-se com a ordem institucional de modo reflexivo e crítico. Desde este horizonte se estabelece que a subjetividade e a liberdade do sujeito frente à lei não podem repousar nela. A saber: “o direito a ter direitos”, não pode ser uma concessão do poder político (do Estado) senão seu fundamento pessoal/social. Reconhece-se a necessidade das instituições, porém sempre condicionadas a um horizonte humano, vale dizer, como meios e não como fins em si mesmos.

Longe de ser “ridícula e perigosa a demanda dos civis mexicanos para serem considerados acima de tudo seres humanos ávidos por sobreviver e dispostos a morrer pelo país”, na realidade constituem processos de empoderamento e organização cidadã encaminhados à produção, manutenção e reprodução de vida, atos políticos portadores de esperança, a qual, como dizia Julio Cortazar, “é a vida mesma defendendo-se”.

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