O tempo testará a Agenda 2030

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Por: Cesar Sanson | 16 Outubro 2015

A Agenda 2030 acaba cometendo o mesmo equívoco das Metas do Milênio ao definir que existem direitos mais urgentes do que outros. O comentário é de Iara Pietricovsky de Oliveira, antropóloga e mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) e da coordenação da Rede Brasil e da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip),  em artigo publicado por Politike, 15-10-2015.

Eis o artigo.

Mais de uma centena de líderes mundiais e representantes da sociedade civil global e do setor corporativo se reuniram em setembro para a Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável, em Nova York. O encontro marcava o lançamento e a adoção da “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.”

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) englobam 17 objetivos e 169 metas envolvendo temas variados, relevantes e desafiadores para o mundo. Sua elaboração partiu de uma decisão tomada na Conferência de Desenvolvimento Sustentável Rio+20, realizada no Rio de Janeiro em junho de 2012, substituindo os Objetivos do Milênio (ODMs) – lançados em 2000 pela ONU, em meio a profundas críticas.

O clima geral do evento por parte dos representantes governamentais, intergovernamentais e setor corporativo (produtivo e financeiro) foi de celebração. Nas palavras do Secretario-Geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, a Agenda 2030 era a definição de um novo momento na história da humanidade. Os co-presidentes da Conferência, o presidente de Uganda, Yomeri Kaguta Museveni, e o primeiro-ministro da Dinamarca, Lars Loke Rasmussen, concluíram que era um novo marco na direção da erradicação da pobreza e na transformação das economias rumo à sustentabilidade.

Uma importante fala em nome da sociedade civil organizada foi a do Secretario-Geral da Anistia Internacional, Salil Shetty, que em seu discurso de abertura foi enfático ao dizer que os governos e o setor privado ainda são muito relutantes na redução do consumo e na transferência de tecnologia, e mostram incoerência entre os discursos de direitos humanos e sua realização concreta e também no clamor da paz, ao mesmo tempo que se tem uma crescente produção de armas no mundo. Sem falar no discurso do Papa Francisco e sua ênfase no tema climático e o chamado para um novo padrão ético no mundo. Sua fala foi a mais aplaudida e de maior impacto midiático, sem dúvida.

A fala da presidente Dilma Rousseff centrada no tema climático pareceu uma boa estratégia para mostrar a vontade política do Brasil sobre o tema e ampliar as ambições para a COP 21 em Paris. Mas, ao mesmo tempo, mostrou que os ODS não estão na agenda prioritária do governo. E quem viveu as condições internas sabe que estamos longe de sua internalização.

O clima entre os movimentos sociais e ONGs presentes, portanto, era de frustração e ceticismo. Com tantos gargalos relacionados ao financiamento necessário para a transição do atual modelo de desenvolvimento para um outro (ou outros) modelos sustentáveis ainda longe de serem resolvidos, não era para menos. Não só a boa vontade política para a efetivação destes acordos continua quase nula (veja os resultados da III Conferência sobre Financiamento ao Desenvolvimento, em Adis Abeba, Etiópia, em julho passado), como existe uma evidente captura corporativa dos governos e das instâncias multilaterais que acabam moldando e infiltrando seus interesses em todos os conteúdos e na própria Agenda recém aprovada pela integralidade dos membros da ONU.

O enfrentamento da extrema desigualdade mundial ficou na periferia da Agenda 2030. No começo de 2014, a ONG Oxfam lançou a pesquisa “Trabalhando para Poucos” (Working for Few), na qual ficou clara a desigualdade no mundo. Segundo o estudo, 1% da humanidade tem mais dinheiro do que os 99% restantes juntos. E mais: as 85 pessoas mais ricas do mundo possuem mais posses do que a metade da população mundial. Isso para não falar nas outras dimensões da desigualdade de gênero, raça, etnia, religião etc.

Ainda que consideremos a Agenda 2030 positiva, sabemos que, a exemplo dos Objetivos do Milénio, os ODS representam um rebaixamento do marco dos direitos humanos no mundo, porque ainda existem populações excluídas (identidade de gênero, migrantes, refugiados, entre outros). Tampouco existe algum tópico que enfrente com seriedade a mudança do modelo de desenvolvimento, ou seja, ataque o sistema de produção e consumo atual.

É bom lembrar sempre que direitos humanos são interconectados, interdependentes e não podem ser hierarquizados. A Agenda 2030 acaba cometendo o mesmo equívoco da anterior, em que existem direitos que são mais urgentes do que outros.Outro aspecto interessante foi notar a felicidade do setor corporativo com a adoção da nova agenda. De alguma maneira, a adequação dela aos interesses das corporações era, no mínimo, constrangedora. Na verdade, é uma agenda que permite manter o modelo que temos, fortalece mais do mesmo, e permite também a esse setor uma visualização de transição sem perda de seus lucros. O que, na visão dos movimentos sociais, ONGs internacionais e locais, e dos povos afetados é profundamente frustrante, para não dizer aviltante.

Temas como regulação financeira, reforma do sistema tributário, luta contra os paraísos fiscais e fluxos de capital ilícitos, entre outros, não foram enfrentados, e sabemos o porquê da dificuldade de colocá-los no centro do debate. Ainda que exista um reconhecimento de um certo desconforto mundial frente à profunda desigualdade e concentração de renda atual, estamos longe da possibilidade de reestruturação dos espaços de poder. Pensar espaços mais participativos e o papel do Estado na promoção da igualdade passaram ao largo de toda a discussão, num mundo cada vez mais complexo e com profundo déficit democrático dentro dos países e nas instâncias de governança mundial.

Durante a Conferência em Nova York, o Global Policy Forum (GPF) da Alemanha lançou um importante trabalho sobre a captura do setor corporativo que vem ocorrendo dentro da família ONU. Sob o título “Fit for whose purpose?”, o estudo mostra a lógica instalada que vem sendo marcada por um multilateralismo seletivo, com impasses da política intergovernamental e a crescente crença na liderança do setor privado corporativo para a resolução dos problemas mundiais. O fosso entre a crescente escalada dos problemas mundiais e a capacidade financeira da ONU de resolvê-los vem crescendo nos últimos anos.

Segundo o estudo, a forma como estão sendo formatados os programas e projetos na ONU, e em suas agências vinculadas, está diretamente relacionada ao novo padrão de financiamento dos mesmos. Existe um aumento dos fundos secundários ou orientados pelos interesses de fundos fiduciários, aumento de dependência dos financiamentos de empresas e a terceirização dos financiamentos e das tomadas de decisão para parceiros globais exclusivos.

A celebração existente deveria ser bem mais moderada, pois, na verdade, não temos nada a comemorar. Ainda que a Agenda 2030 se apresente mais inclusiva que a anterior (ODMs), sua realização concreta parece ainda mais distante.

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