Luis Espinal: artista, ativista, mártir

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27 Julho 2015

Fora da Bolívia, eu acho que poucas pessoas sabiam algo sobre Luis Espinal antes que o Papa Francisco, durante a sua recente visita àquele país, parasse para rezar no local onde o corpo de Espinal, crivado de balas e mostrando sinais de tortura, foi encontrado em um aterro.

O depoimento é de Jerry Ryan, publicada no sítio Commonweal, 16-07-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Evo Morales, primeiro presidente indígena da Bolívia, deu ao papa uma réplica de um crucifixo de madeira que Luis tinha esculpido; ele retrata Cristo pregado em uma foice e um martelo.

Esse pareceu um gesto desajeitado e controverso, para dizer o mínimo, o que implicava que Espinal, um ícone na luta do país pela democracia, era, na verdade, um marxista secreto que apoiaria Morales. Essa, ao menos, foi a impressão que eu tive a partir do modo como o incidente foi apresentado pela mídia. Eu fiquei desconcertado, em um primeiro momento. Esse não era em nada o Luis Espinal que eu conheci.

Eu vivi na Bolívia por cinco anos e cheguei a conhecer "Lucho" Espinal muito bem. De fato, ele é um dos padrinhos do meu filho. Em um corredor da nossa casa, está pendurada uma escultura de madeira de Luis que retrata a cabeça e os braços do Cristo crucificado.

Cristo parece estar em um sono tranquilo, embora de algum modo doloroso, todo absorvido no seu trabalho de redenção.

Não foi difícil chegar a conhecer Luis: ele era uma pessoa muito simples e despretensiosa, que sempre parecia estar disponível a qualquer um. Naquela época, ele era conhecido principalmente como um crítico de cinema e ensinava comunicação na Universidade Católica de La Paz. Seu principal interesse era a mídia. Ele vivia com outros dois jesuítas em uma moradia muito simples em um dos bairros mais pobres de La Paz.

Para entender Luis, é importante situá-lo no contexto do seu tempo. No dia em que eu cheguei em La Paz, em 1974, a grande notícia era de que o governo de Hugo Banzer ordenara a supressão da Comissão Justiça e Paz da Conferência Episcopal Boliviana. O padre encarregado da comissão havia sido expulso do país. A Igreja, acusada de fomentar a agitação social e encorajar a subversão, estava profundamente dividida.

A Constituição boliviana ainda reconhecia o catolicismo como a religião oficial, e o Estado prometera favorecê-la e protegê-la. (Isso mudou há alguns anos, quando a Bolívia se tornou um Estado laico depois de um referendo.) Em troca ao seu status privilegiado, a Igreja tinha a obrigação de cooperar e de apoiar o Estado.

Sob Banzer, os militares governavam por decreto; os partidos políticos e os sindicatos estavam proibidos. A Comissão Justiça e Paz era a única organização que se atrevia a criticar o governo. Com a sua supressão, a tranquilidade foi restaurada – mas era a tranquilidade de um cemitério. Uma grande parte do clero e da hierarquia ficaram satisfeitos com isso: contanto que eles se comportassem e se limitassem a administrar os sacramentos e a vigiar sobre a devoções populares, considerava-se que eles estavam fazendo a obra de Deus, e isso era muito bom. Mas por baixo de tudo isso, havia uma profunda frustração e humilhação.

Elementos do clero ficavam chocados com as péssimas condições e as milhares de pequenas tiranias a que as pessoas eram submetidas. Muitos padres estrangeiros, em particular, não estavam acostumados a lidar com tais situações e sentiram que não podiam cooperar com políticas e práticas tão ofensivas à simples dignidade humana.

Luis era espanhol, mas totalmente dedicado aos pobres da Bolívia; ele havia renunciado à sua cidadania espanhola e era um boliviano naturalizado.

O ponto de virada chegou em 1978, quando Adolfo Pérez Esquivel, o futuro prêmio Nobel da Paz, visitou La Paz. Naquela época, ele era presidente daquela que era chamada de Comissão de Paz e Justiça da Argentina, um grupo de defesa dos direitos humanos. Ele silenciosamente propôs a criação de um grupo semelhante na Bolívia.

Jimmy Carter tinha acabado de ser eleito nos Estados Unidos e estava defendendo os direitos humanos, e sentia-se amplamente que, se pudéssemos montar uma organização dedicada exclusivamente aos direitos humanos, os militares provavelmente não se atreveriam a atacá-la. Também era importante que um grupo desses fosse totalmente independente da Igreja e da sua hierarquia. O novo grupo seria uma voz para os oprimidos, a sua única voz.

Poucos meses depois, um delegado de Pérez Esquivel chegou a La Paz e nos ajudou a organizar. Ele fez um trabalho notável; dentro de uma semana, a Assembleia Permanente de Direitos Humanos havia se tornado uma realidade. Luis fazia parte do projeto, mas um papel de liderança não lhe foi oferecido – e ele nem o quereria. Isso estaria totalmente fora do seu caráter.

A nova Assembleia de Direitos Humanos estabeleceu para si mesma metas muito modestas no início. Ela não estava nada preparada quando um grupo de mulheres cujos maridos tinham sido presos apareceu e anunciou que estava entrando em greve de fome e planejava se instalar na residência do bispo. Os membros da Assembleia tentaram dissuadir as mulheres, dizendo-lhes que isso seria inútil nessa fase do jogo. A resposta das mulheres foi simples: "Nós não viemos aqui à procura de conselhos nem mesmo de apoio. Estamos simplesmente dizendo o que vamos fazer, quer vocês gostem ou não. Os nossos maridos estão na prisão. Não temos nada para comer de qualquer forma, então também devemos jejuar publicamente".

Havia três mulheres e talvez 10 crianças no grupo. Depois de alguns dias, quando se tornou óbvio que o gesto era muito sério, e as crianças ainda recusavam a comida que o bispo lhes enviara, 10 membros da Assembleia se ofereceram para substituir as crianças, e isso foi aceito pelas mães. Luis estava entre aqueles que se ofereceram.

O novo grupo se estabeleceu nos escritórios do Presencia, um jornal diário católico, não particularmente conhecido pela sua oposição à ditadura. Greves de fome logo começaram a irromper em todo o país. Depois de cerca de duas semanas, o governo invadiu os escritórios do jornal e removeram os grevistas de fome à força. As autoridades afirmaram ter encontrado uma grande quantidade de alimentos, bebidas alcoólicas e drogas no local, e que a coisa toda era uma farsa.

Infelizmente para o governo, um canal de televisão, alertado sobre a blitz, gravou e transmitiu toda a ação. A gravação mostrou as pessoas sendo carregadas em macas, fracas demais para caminhar, e cantando as Bem-aventuranças. Cerca de uma semana depois, Banzer anunciou que estava renunciando e que as eleições seriam realizadas.

A transição para a democracia, depois de anos de uma ditadura totalitária, não foi fácil, e, por um longo tempo, a situação foi caótica. Durante esse período, Luis lançou um jornal semanal chamado Aquí, que era uma voz de sanidade e de clareza no meio de toda a confusão. Ele continuou a lecionar na Universidade Católica. Ele era um poeta e um artista, com uma sensibilidade muito aguda e um amor genuíno pelos oprimidos e pelos humilhados.

No dia 21 de março de 1980, ele foi sequestrado a poucas quadras da sua casa. Alguém o ouviu gritar, "É isso!", como se estivesse esperando por isso. Seu corpo foi encontrado na manhã seguinte.

Dizem que, depois da morte de Bento José Labre – um mendigo sem-teto e místico que viveu entre as ruínas do Coliseu romano –, o povo de Roma proclamou-o santo antes que ele sequer fosse enterrado. Algo semelhante aconteceu com Luis. Ele não era particularmente bem conhecido, não era uma grande figura pública, mas toda a cidade de La Paz parou para o seu funeral.

A maior multidão que eu já vi, acompanhou o corpo de Luis da catedral até o cemitério, alguns cantando hinos e rezando, outros gritando slogans políticos. Luis tinha tocado algo profundo nos corações do povo boliviano que ele tanto amava, e eles reconheceram as suas aspirações mais puras nele. A afeição e gratidão do povo não desapareceu com o passar do tempo. Ruas, mercados e escolas foram nomeados em sua honra. Você não pode ir muito longe em La Paz sem ver o seu nome.

Luis não pertencia a nenhum partido político. Nem sequer fazia parte de qualquer "movimento" organizado. Ele era um homem de paz e de diálogo. Havia até mesmo um pouco de timidez nele; ele nunca se impôs e faria pequenos serviços sem ser perguntado. Havia uma pureza inconfundível nele, e essa pureza era verdadeiramente revolucionária.

Mas não me surpreenderia se, dada a situação da época, Luis tenha visto no marxismo valores evangélicos que estavam faltando intensamente em certos setores da Igreja e acreditasse que esses valores podem e devem ser incorporados em uma visão cristã da sociedade.

Parece quase natural que ele tivesse tais sentimentos. Eu mesmo os tive naquela época. Na América Latina, o marxismo assumiu muitas formas; ele não se identificava apenas com o Partido Comunista. Na verdade, os partidos comunistas de boa fé que eu conheci na América Latina eram pequenas "panelinhas" autoenclausuradas com pouco apoio popular. Havia a necessidade de algum tipo de colaboração com o que havia de melhor nos partidos de esquerda. Isso parecia indispensável se se queria uma mudança real.

Quando o Papa Francisco foi questionado sobre o "estranho" presente do "Cristo marxista", a sua resposta esclareceu o significado real da escultura. O papa, ao contrário de mim, parece tê-lo captado imediatamente. Assim como aqueles que tentaram viver as Bem-aventuranças foram automaticamente rotulados como "marxistas" pelos poderosos e confortáveis, Cristo também poderia ter sido crucificado como marxista, rotulado com o estigma da foice e do martelo, com todas as suas conotações de ódio e de destruição. É um desafio muito poderoso e provocante.

Não faltam vozes hoje, nos Estados Unidos e até na Igreja, que rotulam de forma semelhante o Papa Francisco como "marxista" (por exemplo, Rush Limbaugh). Dom Romero foi assassinado dois dias depois de Luis por ser "marxista"; Dorothy Day foi considerada comunista; Thomas Merton, subversivo. O tempo mostrou que eles foram profetas, à frente do seu tempo. "Pelos seus frutos os conhecereis."

O que o Papa Francisco, o "papa marxista", está fazendo pela Igreja é aquilo com que Luis sonhava. E eu acho que o Papa Francisco, que certamente conhecia Luis, está bem ciente disso. Foram pessoas como Luis que foram para as periferias e prepararam o caminho.

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Luis Espinal: artista, ativista, mártir - Instituto Humanitas Unisinos - IHU