As mil faces dos indignados

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10 Março 2015

Olhando do alto, uma imensa multidão apinha-se na Porta do Sol. Um símbolo. Depois da “marcha pela mudança”, organizada no dia 31 de janeiro pelo partido da esquerda radical Podemos, os manifestantes se reuniram neste local de Madri: o berço, em 2011, do movimento dos "indignados", reclamado pelo mais novo partido espanhol. Não sem ajustes estratégicos um pouco acrobáticos.

A reportagem é de Marion Rousset e publicada no jornal Le Monde, 19-02-2015. A tradução é de André Langer.

No Podemos, a proposta de uma secretaria única que monta a sua equipe levou, de fato, a melhor sobre um projeto mais horizontal. Assim, grande parte da atenção centra-se agora na figura de Pablo Iglesias, líder atípico deste partido antiausteridade, agora com mais de 25% das intenções de voto. Mas é apenas a ponta do iceberg. "Estamos testemunhando a implantação de um partido de tipo novo, cuja estrutura interna proíbe a tomada do poder pelo líder. Assim, o líder está na posição de porta-voz. Busca-se um modelo em que a organização estaria sob o controle dos seus membros", disse Albert Ogien. Esse sociólogo não acredita no retorno pela porta dos fundos do modelo antigo, com seu líder carismático e suas decisões tomadas na cúpula.

Porque a originalidade deste ovni político reside precisamente em seu legado. “O surgimento deste novo partido foi possível porque as mentalidades foram abaladas não apenas pela crise econômica, mas também por uma mobilização tão maciça como aquela dos ‘Indignados’”, argumenta o sociólogo Yves Sintomer. Um mar de fundo difícil de entender que se espalha nos últimos anos em todo o mundo, colocando a mídia em apuros. Prova disso é a cobertura da revista americana Time, de outono de 2014: "The Face of Protest". Com este título, mostra o rosto de um adolescente comum, com aspecto frágil e recatado – Joshua Wong, líder de Hong Kong de uma organização de estudantes e de liceus –, no qual a imprensa ocidental descobriu a vedete que estava procurando. Tornado um herói por ter sido detido por 48 horas, o jovem magro, com óculos escuros, era a encarnação de que precisava para dar carne à "revolução de guarda-chuvas" que eclodiu na ilha no outono de 2014. Mas os fatos estão aí: a ausência de líderes é uma das características mais assertivas das mobilizações políticas dos últimos anos. A recusa das antigas hierarquias é o ponto comum de uma série de acontecimentos recentes, que eclodiram tanto nas ditaduras como nos regimes democráticos.

As revoluções árabes serviram para desencadear as manifestações, e todos os continentes as seguiram. "É raro que os movimentos de influência comecem no Sul e proliferem no Norte, analisa o cientista político Bertrand Badie, especialista em relações internacionais. No entanto, foi o que aconteceu. Os ‘indignados’ na Europa, e o movimento Occupy nos Estados Unidos, encontraram sua inspiração explicitamente na ‘Primavera Árabe’. Formas de mimetismo surgiram especialmente na Espanha e na Itália. Assim, em Bolonha, a praça principal da cidade foi rebatizada de Praça Tahrir". Iniciada no norte da África em 2011, a mobilização passou para a Espanha, e depois ela ganhou outros países europeus antes de tocar o epicentro americano das finanças, ao se instalar no Zuccotti Park, em pleno coração de Wall Street.

Graças à internet e às redes sociais, esses movimentos se comunicam e se espalham como fogo. "Os acampamentos americanos estavam equipados com um centro de comunicações munido de uma tela gigante, que eles conectaram por Skype, de forma contínua, com a Praça Tahrir, no Cairo", diz o historiador de ideias François Cusset. "Obrigado Facebook", dizia uma frase escrita em um muro da Avenida Habib Bourguiba, em Túnis, logo depois da queda do presidente Ben Ali, em janeiro de 2011. E hoje? Estas revoltas sem liderança continuam a pulular, da Nigéria ao Brasil, da Argentina à África do Sul, passando pela Turquia e pela Bósnia. Quando se extinguem aqui, eclodem em outros lugares. Como em Hong Kong, recentemente, onde o Occupy Central with Love and Peace veio alongar a lista de "ocupações" que agitam o mundo durante quase quatro anos.

Cada vez, o contexto sócio-político é diferente, assim como as aspirações. Exigir a saída de um ditador é uma coisa, lutar contra os bancos e a corrupção é outra. Mas, para além das especificidades nacionais, um horizonte comum está tomando forma. "Parece um absurdo comparar movimentos política e geograficamente tão diferentes. No entanto, eles compartilham um funcionamento político horizontal que exige uma forma de exemplaridade por parte dos indivíduos", argumenta a filósofa Sandra Laugier, co-autora com Albert Ogien, do livro ‘O princípio democracia’.

"Nesses movimentos contestatórios, o único slogan que se repete é aquele da democracia, diz a socióloga. Esta palavra abriga bilhões de coisas diferentes. Mas o que ela expressa em todas as partes é uma demanda de igualdade e de respeito pela dignidade das pessoas", acrescenta.
As ocupações querem dar um significado concreto a palavras consideradas anteriormente desgastadas.

Neste microcosmo utópico, onde todo mundo tenta ser coerente consigo mesmo e ter um discurso autêntico, a democracia é vivida nas praças das cidades, no meio das barracas, aqui e agora. É nestes lugares que a vida se organiza de acordo com regras rígidas que respondem aos princípios da igualdade e da gratuidade. Nos acampamentos, o tempo de intervenção é dividido igualmente, as decisões são tomadas por consenso e não pela maioria, as responsabilidades são distribuídas de acordo com a disponibilidade de cada um. Alguns são improvisados como "guardas de segurança" ou "técnicos", ao passo que outros estão envolvidos com a cantina ou a limpeza, tudo num ambiente autogestionário.

Para os ocupantes, geralmente não se trata de escolher um representante que sirva de interlocutor com os poderes públicos. Tanto é assim que quando o prefeito de Denver queria conhecer o seu líder os membros do Ocuppy escolheram um cachorro ao qual deram o nome de Shelby. "Não é porque não há um líder que todos estão no mesmo nível, pondera, no entanto, Yves Sintomer. São as pessoas mais ativas que estão no centro, aquelas que podem estar lá permanentemente ou muito regularmente. De fato, essas pessoas têm uma legitimidade maior. Esta lógica não é analisada de maneira reflexiva pelo movimento Occupy, mas ela tem muito peso”. De qualquer maneira, essas experiências fazem tabula rasa da política partidária. Eles desprezam calendários eleitorais e desfiles sindicais, a representação política institucional e as tradicionais manifestações da República à Nação.

A sua maneira de resistir consiste em não se mover, em ocupar o espaço público. "Eles se agarram a um lugar, a uma praça, como um cavalo rabugento. Essa inércia coletiva em um lugar qualquer constitui uma âncora aleatória que substitui a organização ausente e serve de conteúdo político. Ficar, tomar, ocupar: esta é, para estes movimentos, a mais rigorosa e a mais coletiva resistência", teoriza François Cusset. "A palavra ‘movimento’ está completamente errada, emenda Sandra Laugier. Esta forma de protesto inscreve-se na história da revolta sobre o bem comum. Por trás está a ideia de se reapropriar de um território que é de todos." É o que fazem aqueles que montam suas barracas nas praças das cidades, como se planta uma bandeira para tomar posse de um lugar.

Estáticos, os ocupantes indicam a sua recusa em entrar na dança e participar de um jogo político ao qual não se sentem pertencer. "Os movimentos que se movem são movimentos de tomada de poder, e aqueles que não se movem estão na ruptura, compara Bertrand Badie. Estas são iniciativas sinusoidais, sem objetivo de conquista nem vontade de se instalar no tempo”. O gesto está em sintonia com o clima de desconfiança que afeta grande parte das antigas democracias. O Eurobarômetro revelou, em julho 2014, que 68% dos europeus não confiam no seu governo nacional. Na Espanha, a desconfiança é da ordem de 89%, 84% na Grécia e 74% na Itália. E 78% na França, onde uma pesquisa Ipsos, realizada em janeiro de 2014, sobre "novas fraturas" conclui, por outro lado, que "a relação de confiança entre os franceses e um grande número de instituições políticas será interrompida permanentemente". Quanto às críticas à política, elas ganharam terreno na França em relação a 2013: 65% dos franceses consideram que a maioria dos políticos são corruptos, 84% que os políticos agem principalmente para os seus interesses pessoais, 78% que o sistema democrático está funcionando mal – uma percentagem que sobe para 84% na faixa etária de menos de 35 anos.

Outras causas explicam o sentimento de exasperação que levanta estas multidões anônimas. A crise financeira, é claro. Mas também o derramamento de óleo na Louisiana (EUA, 2010) e o acidente nuclear de Fukushima (Japão, 2011). Na França, a questão ambiental também está no centro de lutas locais – o aeroporto de Notre-Dame-des-Landes (Loire-Atlantique) e a hidrelétrica de Sivens (Tarn) – que apresentam estranhas semelhanças com os movimentos sem líderes. "Todos os porta-vozes são chamados de Camille, disse Albert Ogien. Adotar o mesmo nome é destacar o coletivo, sem desmembrá-lo, nem reduzi-lo às individualidades. É também uma maneira de se recusar a ser posto a serviço de representantes que a consideram como algo pessoal e de zombar da maneira como a mídia retrata as informações."

Se a magnitude do fenômeno é nova, a sua história é antiga. Alguns estudiosos fazem-no remontar a 1848, ano em que a "primavera dos povos" irrompe em diferentes países – nem sempre pelas mesmas razões. Outros evocam 1968, que vê os jovens do mundo serem engolidos por uma sociedade de consumo nascente e lançados num protesto anti-autoritário. Entre as recentes ocupações de hoje e greves de ontem, a comparação tem, entretanto, seus limites. "Na França, o maio de 1968 também foi um combate oral de líderes, muitas vezes de rufiões, de líderes de organização, que faziam discursos intermináveis", relativiza Yves Sintomer. Pequenos grupos e líderes já foram a atração principal anteriormente, ao passo que hoje a horizontalidade das trocas é um princípio maior. Quanto à conquista do poder, geralmente não está na ordem do dia. "No século XX, o objetivo era derrubar governos, representativos ou não, para colocar em seu lugar uma revolução proletária, analisa o historiador Yves Cohen. Na década de 1960, os manifestantes ainda eram impulsionados por um horizonte socialista, quando não comunista, que se pretendia melhor que todas as experiências que decepcionaram e enlutaram o século. Os movimentos atuais são críticos desta história e dos frutos das revoluções". Este já foi o caso do movimento anti-globalização: os fóruns sociais queriam mudar o mundo sem tomar o poder.

No entanto, as mudanças se fazem esperar. E por boas razões: difícil imaginar oportunidades políticas concretas sem dialogar com as instituições com base em propostas. "Nós não podemos medir esses movimentos em termos da política tradicional, analisa o sociólogo Geoffrey Pleyers, especialista em movimentos sociais e engajamento dos jovens. A eficácia imediata da decisão não é fundamental para eles. Eles são muito fortes para propor um problema e até mesmo para levar um ditador a renunciar, mas eles têm um poder limitado para ocupar o espaço. O que faz com que o seu interesse também constitua um limite."

A multidão egípcia fez uma experiência amarga: depois de terem tido êxito contra o regime de Mubarak, ela viu finalmente o retorno dos militares ao poder. Na Espanha, o Partido Popular, fincado à direita, que saiu vitorioso das eleições gerais de 20 de novembro de 2011, sobre uma linha que criticou os Indignados.

Tudo isso por nada, então? Não verdadeiramente. Porque o impacto mais profundo das recentes revoltas não é necessariamente visível. "Os movimentos feministas nunca chegaram ao poder, mas eles contribuíram para uma revolução antropológica. Os movimentos ecologistas também não, e, contudo, seus temas penetraram a sociedade, recorda Yves Sintomer. No curto prazo, a recusa de participar do jogo eleitoral pode, contudo, ser ineficaz na melhor das hipóteses e, na pior, contraproducente". Essas multidões sem liderança perturbam aqueles que governam, porque eles gostam de ter interlocutores, precisa Yves Cohen. A questão é saber se podemos realmente desistir de qualquer organização hierárquica. Os próprios movimentos se colocam essa questão". Sem ter uma solução preconcebida.

Primeiro cenário: uma vez terminadas as ocupações, fazer durar o movimento implantando-o localmente. "Aqueles que veem nesta contestação um fogo de palha procuram os movimentos lá onde eles não estão mais", diz Geoffrey Pleyers. Porque os seus atores não desapareceram: é nos bairros que devemos procurá-los. Tendo deixado para trás os microfones e sistemas de som, eles infundem, discretamente, "marés cidadãs" em "pop-up occupations". Envolvidos em uma infinidade de coletivos, eles fornecem assistência jurídica a pessoas ameaçadas de despejo, fazem parcerias para reduzir o desemprego, ocupam escolas para impedir seu fechamento... Mas, em última análise, um sentimento de desgaste acaba se instalando.

Segundo cenário: mergulhar na política, como fizeram os Indignados espanhóis. Para sair do impasse ao qual se sentiam presos e influir sobre as leis do seu país, eles partiram para a conquista do poder. Por que eles? Porque o movimento foi um dos mais poderosos do seu tipo, e que encontrou as competências de um punhado de jovens ideólogos, formados, como Pablo Iglesias, da Universidade Complutense de Madri. Mas também porque o Podemos preencheu um vazio. "Na Espanha, o Partido Socialista desfaleceu, ao passo que os eurocomunistas da Esquerda Unida criaram um aparelho tradicional, que não soube ocupar o espaço", explica Yves Sintomer.

O partido antiausteridade, dividido entre o pragmatismo e o desejo de mudança, já apareceu em terreno propício. Nada impede que ele possa servir de modelo para outros. "Se o Podemos não se deixar prender pela mecânica normal dos partidos, esta experiência poderá prenunciar novas formas de política. Também encontramos vestígios na França, com o estabelecimento das primárias, bem como o fenômeno das ZAD – zonas de defesa”, diz Albert Ogien. "Os partidos viveram durante muito tempo com a ideia de que cabia a eles formar a opinião. No século XXI, é a opinião que forma os partidos. Os cidadãos não querem mais que se fale em seu nome”. Um vasto programa.

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