O poder não existe. Entrevista especial com Augusto Jobim do Amaral

O pesquisador analisa a noção de "vontade de saber-poder" em História da Sexualidade: A vontade do saber, que é tema de ciclo de estudos no Instituto Humanitas Unisinos - IHU

27 Setembro 2021

 

O primeiro volume de História da Sexualidade, intitulado História da Sexualidade: A vontade do saber; a entrevista concedida por Michel Foucault pouco antes da sua morte, em 1983, com o título "Estruturalismo e pós-estruturalismo"; e a conferência ministrada por ele em 1981, intitulada As malhas do poder, têm as chaves centrais para compreendermos o pensamento do filósofo francês no que diz respeito às reflexões sobre as formas de subjetivação e para "não encerrá-lo como um teórico do poder", segundo Augusto Jobim do Amaral, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS.

 

Em conferência virtual ministrada no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, sobre "Vontade de Saber-Poder e o Problema do Sujeito", Jobim explica que Foucault "procura fazer, sem dúvida, uma analítica do poder" a fim de mostrar o "poder como uma tecnologia, um conjunto de técnicas" e, por fim, sublinhar que não existe o poder. "Isso não quer dizer que não existam aparatos e modos de sujeição através das regras jurídicas, isso não quer dizer que não se formem sistemas gerais de dominação, mas eles são 'apenas' efeitos, formas terminais, ou seja, efeitos das relações de poder. Portanto, falar em poder é falar em relações de força, de tensões".

 

História da Sexualidade, obra de Michel Foucault publicada em quatro volumes – sendo o último postumamente –, é tema do Ciclo de Estudos sobre a História da Sexualidade, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, em parceria com o Prof. Dr. Augusto Jobim do Amaral, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. O ciclo, que iniciou no dia 24 de agosto, se estende até 09 de outubro. Nos encontros virtuais, especialistas na obra de Foucault comentam e analisam os quatro volumes de História da Sexualidade. O evento é transmitido pela página eletrônica do IHU, nas redes sociais e também no Canal do IHU no YouTube.

 

A seguir, reproduzimos a conferência de abertura, com Augusto Jobim do Amaral, no formato de entrevista.

 

Augusto Jobim do Amaral (Foto: Reprodução/Youtube)

 

Augusto Jobim do Amaral é doutor em Altos Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra, Portugal, e doutor, mestre e especialista em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, onde leciona atualmente nos Programas de Pós-Graduação em Filosofia e em Ciências Criminais. Também realizou pós-doutorado em Filosofia Política pela Università degli Studi di Padova.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Como compreende os conceitos “vontade de saber-poder” e o problema do sujeito em História da Sexualidade, de Foucault?

Augusto Jobim do Amaral - Foucault jamais quis ser um monumento; quis ser simplesmente um autor. Ele interrogava o que se poderia chamar de “autor”. Ou seja, a última coisa que ele queria é que sua obra fosse monumentalizada. Então, este evento [Ciclo de Estudos sobre a História da Sexualidade] é um pretexto para pensar a história da sexualidade a partir desses volumes tão importantes para o estudo da filosofia contemporânea.

O ciclo tenta comungar diversas perspectivas sobre os volumes de História da Sexualidade, utilizando o impulso dado pelo volume IV, Confissões da carne, que foi recém traduzido para o português.

 

Vontade de saber-poder

A minha proposta é fazer uma provocação que está no próprio título [do primeiro volume], fazendo um jogo de palavras em torno daquilo que é o próprio volume I de História da Sexualidade [História da Sexualidade: A vontade do saber]: vontade de saber-poder e a problemática envolvendo a produção do sujeito.

Vou propor essa conversa em três momentos. Um momento em que vamos conversar – como História da Sexualidade é a âncora da nossa conversa – sobre a segunda parte de História da Sexualidade: A vontade do saber, na qual Foucault diz “o que está em jogo”, para depois conseguirmos conversar a respeito de outros dois eixos que são extremamente importantes: um texto de 1982, chamado O sujeito e o poder; e uma entrevista que foi dada [por Foucault] em 1983, chamada Estruturalismo e pós-estruturalismo. Esse será meu tripé de apoio.

Vou começar com a provocação que o próprio Foucault coloca nessa entrevista: “Portanto, não sou de forma alguma um teórico do poder. Eu diria que o poder, em última instância, não me interessa como questão autônoma. Se em várias ocasiões fui levado a falar da questão do poder, é na medida em que a análise política que era feita dos fenômenos do poder não me parecia ser capaz de dar conta desses fenômenos mais sutis e mais detalhados”. Essa é uma espécie de aproximação com a qual já deveríamos estar acostumados quando se percebe Foucault como um pensador do sujeito, ou melhor, das formas de subjetivação, dos modos de produzir aquilo que chamamos de sujeitos. Isso é extremamente importante para não encerrá-lo como um teórico do poder. Desde a História da Loucura, O nascimento da clínica, As palavras e as coisas, ou seja, desde a década de 1960 até a década de 1970 – que é a data do seu discurso inaugural no Collège de France, A ordem do discurso: Aula inaugural no Collège de France – está colocada a necessidade de perceber os emaranhados entre saber-poder. Sobre isso, não temos a menor sombra de dúvidas. Claro que em 1976, com o volume I de História da Sexualidade, isso fica mais sistematizado através de uma obra publicada.

 

IHU - O que é importante em História da Sexualidade: A vontade do saber?

Augusto Jobim do Amaral – Nesta que é uma das obras mais importantes de toda a carreira de Foucault, um ponto é nevrálgico: o que ele procura fazer, sem dúvida, é uma analítica do poder, mas uma analítica do poder que tenha um propósito. Por onde passa essa analítica do poder, principalmente no capítulo quatro, no tópico número dois, do método, e no tópico número um, em que ele pergunta “o que está em jogo?” Sobretudo, definiria através de uma expressão: o poder produz. Os poderes são produtores de produtos, são máquinas de produzir.

 

Poder como tecnologia

Essa [os poderes são produtores de produtos] é uma expressão que não está em História da Sexualidade: A vontade do saber, mas em uma tremenda conferência de 1981, chamada As malhas do poder, proferida na Universidade Federal da Bahia, em que ele passa a trabalhar o poder como uma tecnologia, um conjunto de técnicas. É muito comum, nas nossas áreas, em especial no mundo jurídico e na sociologia, construirmos uma analítica do poder desde uma concepção jurídica. Esse é um dos pontos nevrálgicos que Foucault vai tentar liberar. Ele diz: “liberar o poder do privilégio teórico da lei e da soberania”. Inclusive, tem uma expressão clássica no volume I de História da Sexualidade, em que ele diz: “Pensar o poder sem o rei. Ainda não cortamos a cabeça do rei”. Ele quer dizer com isso que, historicamente, nunca houve uma teoria do poder que não fosse uma concepção jurídica. Ele exagera nesse ponto fundamental para dar ênfase e sublinhar que não há o poder. Isso não quer dizer que não existam aparatos e modos de sujeição através das regras jurídicas, isso não quer dizer que não se formem sistemas gerais de dominação, mas eles são “apenas” efeitos, formas terminais, ou seja, efeitos das relações de poder. Portanto, falar em poder é falar em relações de força, de tensões. Isso ele tira sobretudo de três autores, sendo um deles, Nietzsche.

 

O poder não existe

Quando ele faz essa reflexão de que o poder não existe, está querendo deslocar a questão e tratar o poder como um campo de multiplicidades e de correlação de forças. Portanto, situações estratégicas, instáveis, produzidas a cada instante, sobretudo, multifocal. Essa é a linha geral com que ele vai esboçar, em História da Sexualidade, o poder como tecnologia. Ele assume isso na conferência – por isso estou fazendo esse pingue-pongue entre a conferência e o primeiro volume de História da Sexualidade – e diz de onde tira essa ideia, para além de outros momentos em que ele assume que faz isso através da narrativa histórica e da desconstrução do sujeito moderno através de Nietzsche. Mas essa concepção precisa de que o poder produz, o poder como tecnologia e não o poder como algo que se possua, que se detenha, que se compartilhe, que se divida, que se ceda, tal como aparece nas narrativas contratualistas, por exemplo, e nas narrativas jurídicas como um todo, ele retira fundamentalmente de Pierre Clastres, em A sociedade contra o Estado. Ele assume claramente ali a sua leitura antropológica do poder, e aponta proposições em História da Sexualidade: A vontade do saber.

Quais são essas proposições? Repito: poder não se adquire, poder não se compartilha, poder não se arrebata, poder não se toma, poder não se guarda, poder não se escapa; poder se exerce. Ficou clássica essa proposição foucaultiana. Poder se exerce em muitas e multifocais relações móveis, desiguais, nada isomórficas. Ou seja, elas não têm as mesmas formas; elas são isomórficas, instáveis. Esse é o ponto fundamental. As outras proposições, na minha opinião, são apenas desdobramentos desta primeira.

 

 

Relações de poder

As relações de poder são imanentes, não são exteriores às outras relações, não existem relações econômicas, sociais, sexuais e relações de poder acima ou abaixo; não, as relações de poder se formam de todos os lados. Foucault vai dizer ainda que essas relações de poder vêm de baixo, para, na página seguinte, dizer que elas vêm de todos os lados. Mas ele está querendo frisar que se elas vêm de baixo é porque não têm um ponto privilegiado, onde o poder esteja concentrado, por exemplo. A relação de poder atravessa o corpo social. Aquilo que chamamos de grandes dominações, grandes campos de domínio, os efeitos hegemônicos – ele usa, inclusive, esse termo –, são apenas formas terminais, efeitos estabilizados dessas relações. Isso é fundamental para dizer que não resulta de uma determinação ou de uma vontade solipsista de um sujeito, ainda que tenha intenções, objetivos, miras, alvos.

Mas a última proposição, que talvez me traga aqui de maneira mais incisiva, é – e aqui está o ponto de mutação ou de viragem entre as duas partes da minha fala – “onde há poder, há resistências”. Essas resistências não são produto, uma espécie de reflexo do poder. Elas são exatamente aquilo que nos possibilita entendermos as estratégias e as situações em cada relação de poder. Em outras palavras, onde há poder, há resistência, pontos que representam a relação, uma espécie de saliência, do adversário, como diz Foucault. Isso se desdobra e tem como conclusão lógica uma questão: não há um grande local de recusa, não há uma única Bastilha a ser tomada. Ou seja, não existe um grande local que precisa ser tomado e feito por uma pura lei de revolução. Não há um foco da revolta. Não há uma lei que vai orientá-la. As resistências são plurais, nada passivas, muito menos negativas. As resistências têm outro tipo de dinâmica. É por aqui, na minha opinião, que passamos a perceber o ponto nevrálgico da filosofia de Foucault, entre outros momentos, é claro. Mas um momento privilegiado entre vários está aqui.

 

IHU - Por que ele se utiliza dessa nova analítica do poder?

Augusto Jobim do Amaral – Ele propõe essa nova analítica do poder porque vai tentar perceber o que vai chamar, ainda no volume I de História da Sexualidade: A vontade do saber, de biopolítica. Essa analítica do poder é dirigida a um foco: perceber como se gere a vida a partir de um determinado ponto, sobretudo a partir do século XVII, segundo Foucault – ainda que depois ele varie acerca das datas, recuando um pouco ou trazendo a data mais adiante. Mas interessa perceber que o poder político de gerir a vida se dá através de dois polos: já não mais se trata de um direito de matar, mas investir sobre a vida, ou seja, a vida como objeto político.

 

Biopolítica

Nesse sentido, a biopolítica funciona como uma face dupla: por um lado, investida através dos corpos, produzindo corpos máquina – essas são as técnicas disciplinares, que costumamos entender como disciplina –, em volta daquilo que ele chama de produção de corpos úteis, dóceis, não apenas no sentido de corpos passivos, mas corpos sobre os quais se prescreve determinado comportamento: anatomopolítica dos corpos humanos, administração dos corpos, um poder individualizador. Mas a outra face, a mais importante sobre a qual Foucault depois vai deslocar o seu trabalho, é o corpo-espécie, o humano visto como uma espécie biológica. Aí se implementa uma gestão calculista da vida, aquilo que ele vai chamar de biopolítica das populações, a regulação das populações. Por óbvio, aí vai se explicar porque, automaticamente, no ano seguinte, em 1977 e 1978, o seminário no Collège de France vai ser sobre Segurança, Território e População, onde se extrai a aula de primeiro de fevereiro de 1978, a única publicada em vida por Foucault, chamada A história da governabilidade. Ali, Foucault dispõe o que ele mesmo chama nessa aula de triângulo, de histórias das tecnologias de poder. O triângulo é exatamente os três pontos que ele havia apontado em História da Sexualidade: A vontade do saber: a soberania, na outra ponta do vértice a disciplina e, na outra ponta, o governo. Portanto, aqui, o governo não é apenas um modo de administrar que emerge do Estado; é o contrário. Foucault vai tentar apontar como o Estado se governamentalizou.

Vou fazer uma citação clássica. Ao comentar o conceito de governamentalidade, Foucault assim o refere: “Com essa palavra governamentalidade, eu aludo três coisas: conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises, reflexões, cálculos, táticas, que permitem exercer essa forma bem específica, ainda que muito complexa, de poder, que tem como principal flanco de incidência a população, como forma de saber, economia política, e como instrumento técnico, dispositivos de segurança”. Essa, para mim, é a dimensão mais importante para as leituras da filosofia foucaultiana.

Quando ele propõe esse triângulo a que fiz referência, soberania, disciplina, governo, ou se quiserem segurança, que mais tardiamente Deleuze vai chamar de controle, não há nenhum tipo de dissociação entre eles nem algo estático. Quando nós implementamos técnicas de segurança não se ignoram técnicas de soberania; quando nós aplicamos técnicas disciplinares não se abandonam as dimensões da lei, ao contrário, elas incidem de modo diferente e “governam” de maneiras diversas. Na aula anterior à de 1º de fevereiro, três verbos orientam muito bem as histórias das tecnologias. Ele vai dizer que enquanto a soberania trabalha com a lei, incide sobre o território – modo como exerce seu poder –, produz súditos a partir da lei, tendo a lei como produto privilegiado. A disciplina incide nos corpos para produzir trabalhadores e corpos dóceis; como dirá Foucault, em outro momento, “transformar vagabundos em trabalhadores e agricultores em soldados”.

A disciplina prescreve e esse é o segundo verbo fundamental. Enquanto a lei proíbe, a disciplina prescreve determinado comportamento. Vejam que mais sofisticada será a inclinação de Foucault para falar da governamentalidade, da ruptura que ele verifica, pois em termos de governo, o governo não apenas trabalha com a lei, mas utiliza a lei como tática e, sobretudo, regula. Este é o terceiro verbo fundamental, ou seja, a sofisticação de incidência passa pela espécie humana como categoria biológica, através de cálculos sobre esta população, incide sobre a população, entendida como categoria biológica, do ser humano. É a partir disso que instituições, processos, análises, reflexões, cálculos e táticas asseguram um governo dos viventes. Isto é: proibição, prescrição, regulação.

Esse talvez seja o mais interessante porque é o mais sofisticado. O que Foucault vai dizer em outra aula desse seminário é: se a lei trabalha com uma espécie de imaginário do que é proibido, se a disciplina trabalha com uma espécie de prescrição como complemento do real – em que as pessoas têm que fazer mais do que estão fazendo –, a governamentalidade trabalha na realidade, incidindo no instante. Por isso a importância da ideia, inclusive trabalhada por outros autores, ligada à etimologia da palavra governo, que tem a ver com navegar, com o timoneiro do barco, aquele que conduz dentro das intempéries em direção a determinado destino que não se sabe qual.

Eu fiz todo esse quadro em um primeiro momento para que tenhamos mais claro o que vou falar nesse segundo. Se num primeiro momento Foucault pretende demonstrar como o poder se exerce de determinadas formas, como produz saberes e, sobretudo, como também fabrica modos de vida, formas de subjetivação, na entrevista que ele concede em 1982, intitulada O sujeito e o poder, ele é muito claro em afirmar que, cito ele, “o objetivo do meu trabalho não foi analisar o fenômeno do poder e sim a história dos diferentes modos pelos quais os seres humanos tornaram-se sujeitos”.

Aqui fica um pouco mais clara a trajetória de toda a filosofia foucaultiana, longe de uma leitura como se houvesse “fases” de Foucault, que é sua ligação e preocupação com o sujeito, como nos tornamos quem somos, como podemos ser diferentes do que somos, fazemos e pensamos. Esse é o modo mais importante de pensar como se conduz a obra foucaultiana. Nesse mesmo texto de 1982 ele vai dizer que, sobretudo, houve três modos que fizeram com que o ser humano pudesse assim ser chamado. Três modos de objetificação, no sentido de ter se tornado um objeto de um saber e poder ao mesmo tempo.

Nos primeiros livros de Foucault, na década de 1960, está tentando identificar um sujeito do discurso, um sujeito produtivo, um sujeito vivo, no sentido de ser vivente. A gente percebe isso claramente em As palavras e as coisas, em que vemos isso na gramática, na economia e na biologia. Depois conseguimos perceber na década de 1970 um ponto de tensão, uma descontinuidade, pois sua filosofia é uma filosofia das descontinuidades, que é uma análise das práticas divisórias, aquilo que permite aos homens se dividirem entre si, entre sanidade e loucura, normal e anormal, criminoso e bem-comportado, assim por diante. É essa cisão que atravessa os saberes, os poderes e os modos de vida dentro de uma história do presente.

O outro ponto, este sim fundamental para mim, é o momento em que ele, em 1982, estava pensando sobre o momento em que o ser humano torna-se sujeito. Assim, repete Foucault, “é o poder que constitui meu tema central de pesquisa”. Mas retoma de maneira muito incisiva o modo como ele vai tentar demonstrar que o tema central de sua pesquisa sempre foi o sujeito e, para isso, ele vai dizer “necessitamos de uma nova economia da relação de poder”, então novamente ele volta. É quase como um movimento de onda – e Deleuze repete isso –, como quem canta a mesma canção várias vezes de maneira diferente, que ele faz para pensar o poder para além do modelo legal, institucional, soberano, jurídico. O ponto de partida dele era isso. O ponto de partida de Foucault não era, simplesmente, uma teoria do poder, consistia em analisar as formas de resistência, contra as diferentes formas de poder. Tratava-se de pensar exercícios ou formas de contrapoder; dentro dessas tensões absolutas em disputa, de modo agonístico, da luta, do embate e do combate, era importante perceber que as resistências vêm antes. As resistências não são efeitos, produtos, resultados das relações de poder, elas vêm antes. Para isso ele usa uma metáfora maravilhosa, resistência funciona como catalisadores químicos, tornando visível o que já é visível, mas que não enxergamos direito. Em outras palavras, trata-se de perceber como o poder se exerce.

 

 

Para construir essa nova analítica, o fundamental são as resistências, pois só a partir delas vamos compreender como o poder se exerce em cada instante, cada local, cada situação. Para entender como funciona a legalidade, eu preciso entender a gestão dos ilegalismos. Se eu quero entender a noção de sanidade, de um sujeito consciente de si, tenho que entender a loucura. Um ponto importante ao investigar essas formas de resistência é levar em conta o que elas têm em comum, ainda que sejam diversas, nada isomórficas, completamente instáveis. As resistências são transversais, portanto atravessam vários territórios, não sendo confinadas a determinadas formas políticas e nem a um país. Obviamente são lutas imediatas, criticam o que está mais próximo, aquilo que não identifica uma espécie de inimigo mor e não espera uma solução dos problemas. Essas lutas transversais atacam diretamente os efeitos do poder, por isso são anárquicas, termo que Foucault utiliza. É importante abrir um parêntese aqui para dizer que há, às vezes, um exercício de docilização dos autores, aproximando-os a outros autores muito mais afeitos a uma espécie de democracia social-liberal e vertentes de diálogo, relacionadas às formas discursivas, mas lamento informar que aqui (em Foucault) não. O que está em jogo, neste caso, são resistências e lutas anárquicas que, sobretudo, questionam o estatuto do indivíduo. O estatuto daquele que é identificado como tal, seja pela lei ou por uma identidade, por exemplo, de modo coercitivo. Tanto é que Foucault chama de governo da individualização.

Este tipo de luta é contra certos privilégios de saber. O que Foucault faz é colocar um ponto de interrogação sobre quem somos nós, como fomos forjados da maneira que somos, pensamos e fazemos as coisas. Ele faz tudo isso não para fazer uma espécie de administração desse jogo. Em Le jeu de Foucault, uma entrevista, ele diz que não quer entender como se joga esse jogo para tirar uma melhor utilidade possível, mas deseja que esse jogo não seja jogado dessa maneira, que as relações de força não sejam estabilizadas da forma como estão, mas que sejam transformadas. O objetivo destas lutas não é atacar determinado grupo ou instituição, mas atacar as técnicas e as formas de poder ou modos de subjetivação, sobre o qual nós somos preparados.

Nesse momento de sua vida, em 1982, Foucault está bastante maduro para dizer que aquilo que ele chamava de biopolítica em 1976, sem fazer uma sinonímia das categorias, torna-se uma crítica ao poder pastoral. Um poder pastoral que é, por um lado, individualizado e analítico – a anatomopolítica dos corpos –, mas por outro lado de maneira globalizada, qualitativa, no sentido do governo das populações. É de todos e de cada um. Tudo isso serve para recusarmos o que somos, imaginar o que poderíamos ser e sobretudo “promover novas formas de subjetividade”, como dizia Foucault. Este é o ponto nevrálgico: como se exerce o poder.

 

 

Ao analisar o poder, Foucault insiste nas especificidades das relações. Isso porque não faz sentido perguntar de onde ele vem, quem ele é, porque de fato não estamos falando do poder como uma ideia repressiva e moral, mas como um modo de ação, que não é direto sobre os outros, mas ação sobre ação. Esta é uma das conceituações mais diretas sobre o que Foucault chama de governo, pois governo não tem a ver simplesmente com domínio e repressão, mas muito mais com uma série de verbos que já se tornaram clássicos quando se fala de Foucault e sua analítica do poder. O poder incita, o poder induz, o poder desvia, o poder facilita, o poder torna difícil, o poder amplia, o poder limita, o poder torna provável. Ou seja, governo é conduzir condutas, ações sobre ações, por isso todas estas estratégias implicam em submissão, antes de qualquer coisa. Implica liberdade em um sentido muito estrito, não no sentido liberal clássico em que a minha liberdade de ação termina onde começa a do outro; é capacidade de fazer e de transformar, se transformar e transformar as maneiras como nos relacionamos com os outros e as coisas. Por isso a implicação anterior é das resistências e das insubmissões. Analisar as instituições a partir das relações de poder não dá certo, é o inverso, por isso é difícil desde as ciências sociais e das ciências sociais aplicadas tentar entender isso. A nossa mania é analisar as instituições e a partir delas compreender as relações de poder. O que ocorre é o contrário, as instituições são o efeito dessas relações de poder. As formas e os lugares de governo são múltiplos. E essas formas são tão ricas e sofisticadas que o Estado se governamentalizou, não é o governo que é um instrumento do Estado, mas as formas de governo são múltiplas e os governantes são vários.

Para além do debate que se colocava na França naquela época (começo dos anos 1980) e que Foucault dizia que era muito mais um efeito dos debates de leste – de marxismo e leninismo que se colocava –, ele deixava muito claro que todos aqueles que eram atacados como sendo pós-estruturalistas, inclusive colocavam o Althusser como um deles, estavam somente tentando pensar os sujeitos de modo diferente. Se houvesse uma forma de pensar esses sujeitos todos, a questão era pensar o sujeito de modo diferente do que se pensava antes. Obviamente ele está apontando para uma espécie de tradição que vem desde Kant, Hegel e que vai chegar na França naquela época, inclusive, através do próprio existencialismo e da fenomenologia. Esses são os dois campos, sem dúvida nenhuma, em que Foucault vai se distar.

 

Filosofia da experiência

Por isso, repito as inspirações que ele vai ter das leituras de Nietzsche através de Kozlowski e de Mattei, para se desvencilhar do existencialismo. Mas, e aqui está a hipótese que quero trabalhar, pois esse texto da conferência está em construção e só vou fechá-lo depois de conversar com vocês, é que a inspiração mais interessante talvez seja a de Maurice Blanchot, uma inspiração ao Foucault. E essa inspiração é justamente em torno das chamadas experiências limite, que são exatamente as experiências de transformação do sujeito.

Nessa entrevista de 1983, além de voltar a insistir que não se pode pensar o poder através de uma racionalidade, não o Poder [com letra maiúscula], e insistir que o fundamental para ele não seria realizar uma teoria do poder, a questão é saber como estão ligados entre si a reflexividade do sujeito e o discurso da verdade, como o sujeito pode dizer a verdade sobre ele mesmo. Obviamente uma influência e punção aqui absurdamente nietzschiana nesse sentido. O poder não me interessa como ator, como fiz na provocação lá no início da minha conversa. E aí sim a tentativa de perceber, o que pode parecer meio estranho e por isso sempre peço calma, que um foco, para mim, mais ativo do pensamento de Foucault é uma Filosofia da experiência. Mas, não no sentido anteriormente colocado, por exemplo, de um sujeito ainda transcendental dentro do existencialismo e sim como uma Filosofia da experiência da alteração.

 

Experiência limite

E colocaria, ainda, uma gota a mais de pimenta nessa história, não sozinho e sim através de um texto maravilhoso do Christian Laval sobre Foucault e a experiência utópica, em que ele diz que estamos diante, sem dúvida nenhuma, de uma das espécies das Filosofias da alteridade – Filosofias da diferença, ele vai dizer. Pode soar estranho nesse momento e espero que não soe ao final, porque numa entrevista dada por Foucault no final de 1978 a Duccio Trombadori ele fala numa experiência limite. Ele diz que ainda não é um teórico, mas se coloca como um ‘experimentador’. Essa experiência, aí sim ele coloca de maneira muito clara, nós estamos falando, sobretudo, de sair transformado dela, ir para além do perímetro, essa é exatamente a orientação dele.

É uma espécie de ethos para além do logos, uma espécie de encontro para além do legen, da reunião do logos. Isso vai para além do mero vivido. Ou seja, arrancar-se, como diz Foucault, o sujeito de si mesmo. Experiência, inclusive no sentido de levar algo à explosão da categoria do sujeito. Essa experiência, sem dúvida, supõe uma história da verdade – sobre a qual poderíamos falar noutro momento. Mas, se é para levar a sério a provocação de Foucault – inclusive citando um daqueles sobre os quais se diz ser muito dissonante das categorias foucaultianas –, ele diz: se é para citar Marx, nos Escritos Econômicos e Filosóficos em que ele, Marx, diz que o homem produz o homem, é para pensá-lo dessa maneira.

Foucault fala em produzir algo que não existe não no sentido de um valor de produção, o homem sendo objeto de valor de produção de outro, mas a ideia de destruição daquilo que somos e invenção de uma coisa totalmente outra. Inclusive, o termo que Foucault usa numa outra entrevista é “viver de outro modo o tempo”. Isso pode soar bastante familiar para alguns conhecedores da filosofia francesa do século passado, quando temos livros que vão da envergadura de um Emmanuel Levinas escrevendo exatamente o mesmo livro com o mesmo título, “autre homme”, outro modo que ser. Não estou tentando fazer uma aproximação irresponsável aqui, mas estou tentando compartilhar campos de inquietação comuns.

Campo da experiência, ou seja, experiência como aquilo que faz fugir das minhas condições de possibilidade, virtualidades de deslocamento, modificações de modo de vida, inquietude de si, a ideia de experiência como possibilidade de transgressão. Por isso a descontinuidade sobre diversos assuntos que Foucault vai trabalhar. Repito: filosofia da descontinuidade, vai dizer Judith Revel.

 

Experiência utópica

Ele fez tudo isso, essa análise do exercício efetivo das relações de poder através da existência exatamente porque através delas nós podemos escapar dessas mesmas relações, transformá-las. Eis aí o foco fundamental e ativo do pensamento de Foucault. Uma experiência utópica, mas apenas ou-topos, de uma maneira muito especial, como dizem outros textos: um espaço outro, uma corporeidade nova, corpus utopicus como pareceu recentemente nos últimos textos de Foucault, uma heterotopia inquieta, espaços outros aqui e agora, fora do lugar, sem dúvida, mas são localizáveis não de uma dimensão atemporal de um horizonte que nunca chega. Não é isso, é aqui, a capacidade de transgressão possível.

 

Vontade radical de alteridade

Eu avançaria, talvez, em duas pistas. Foucault aponta duas experiências históricas que rompem com a ideia de historicidade, dada como um impulso praticamente determinante. Não é o Maio de 68 francês. É o Março de 68 na Tunísia, onde ele estava. E, outra, a tremenda polêmica da Revolução Iraniana em 1978, com os textos de 78 e 79. Por aqui, sem dúvida nenhuma, pulsa uma espécie de vontade radical. Como diz Foucault, uma espécie de vontade radical de alteridade de si.

Alteridade de si mesmo, aqui está o modelo muito comum de toda a filosofia francesa de algum modo, pois há categorias como, por exemplo, “acontecimento”, em que vamos encontrar desde Jacques Derrida até autores contemporâneos da filosofia francesa. Ou seja, uma vontade, sem dúvida nenhuma, de revolta, mas, sobretudo, uma revolta da vida.

 

Modos de insurgência

E encerro com uma citação. No Volume 5, em que Foucault fala ao Le Monde sobre a Revolução Iraniana, num texto chamado “É inútil revoltar-se?”, ele diz: “as insurreições pertencem à História, mas de certa forma lhe escapam. Um movimento com que um homem só, um grupo, uma minoria ou todo um povo diz ‘não obedeço mais’ e joga na cara de um poder que ele considera injusto o risco de sua vida, esse movimento me parece irredutível. Se a sociedade se mantém viva é porque os homens se insurgem”. Aqui, me parece que é sem dúvida nenhuma o ponto nevrálgico de toda a nossa conversa. Modos de insurgência, produzir modos de insurgência através de outras relações de poder, sermos governados de outra maneira ou, como diz Foucault, “não sermos mais governados”.

 

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