Plano de expansão de barragens hidrelétricas na Bacia Amazônica coloca em risco populações locais e a biodiversidade. Entrevista especial com Philip M. Fearnside

Para o pesquisador, planos do governo federal são insustentáveis tanto do ponto de vista da produção de energia quanto no que toca aos direitos das populações locais

Mulheres munduruku na ocupação da Usina São Manoel | Foto: Juliana Rosa - Fórum Teles Pires

Por: Patricia Fachin | Edição: Ricardo Machado | 26 Outubro 2020

Até 1975 não havia barragens na Bacia Amazônica brasileira. Mas, nos últimos 45 anos, foram construídas ou estão em construção por volta de duas centenas de barragens, embora os números e os estudos indiquem uma variação nessa contagem. “A primeira barragem foi Coaracy Nunes, construída no Amapá em 1975, seguida por Curuá-Una no Pará em 1977. A primeira ‘mega’ barragem foi a de Tucuruí em 1984”, recorda o pesquisador Philip Fearnside, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

 

“As barragens estão destruindo os rios amazônicos, que são a fonte de sustento para uma grande parte da população tradicional da região. Os reservatórios também expulsam a população que vive nesses lugares. As barragens modificam as características físicas, químicas e biológicas dos rios de forma que os deixam menos biodiversos e menos produtivos em peixes”, explica.

 

Ainda que haja um discurso oficial de que a construção de barragens é necessária para trazer bem-estar às populações locais, ampliando o acesso à energia elétrica, a verdade é que os empreendimentos das hidrelétricas não somente são nocivos às populações locais, como se destinam prioritariamente às grandes indústrias. “A linha de transmissão Roraima-Manaus, que é planejada para trazer energia de Tucuruí para Roraima, também seria necessária para as barragens planejadas em Roraima, pois essas não são prioridade por causa do povo de Roraima, mas sim para transmitir energia para Manaus, liberando assim a energia de Tucuruí para ser transmitida até a região Sudeste”, esclarece Fearnside. “A lógica é que Roraima, sendo localizado no hemisfério Norte, tem a época chuvosa invertida em relação ao resto do Brasil e, portanto, pode gerar e transmitir energia durante a estação quando falta água nas hidrelétricas que sustentam as indústrias em outras partes do país”, complementa.

 

Na prática, há alternativas mais baratas e ecologicamente sustentáveis às hidrelétricas, que, desde a ditadura civil-militar, passando pelos governos desenvolvimentistas de esquerda, vêm sendo uma alternativa rentável para grandes empreiteiras e alvo de investigações sobre corrupção. “Em outras palavras, o Brasil poderia obter toda a eletricidade que demanda, aproveitando este recurso eólico sem ter de permitir que hidrelétricas sejam construídas nas Terras Indígenas e unidades de conservação da Amazônia. Energia solar é considerada, mas é evidente que não tem a prioridade que merece”, sugere o entrevistado.

 

Philip Fearnside (Foto: Global Landscapes Forum)

Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan, EUA, e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - Inpa, em Manaus, AM, onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas - IPCC, em 2007.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Quantas barragens operam na bacia do rio Amazonas e desde quando elas estão em operação?

Philip M. Fearnside – Em 2019, Rafael Almeida e colaboradores identificaram 158 barragens na Bacia Amazônica como um todo, em operação ou em construção, e 351 barragens propostas com pelo menos 1 megawatt (MW) de capacidade instalada. Em 2016, Alexander Lees e colaboradores contaram 191 barragens concluídas e outras 246 que estavam planejadas ou em construção. Em 2012, Matt Finer e Clinton Jenkins identificaram 48 barragens existentes e 151 barragens planejadas com pelo menos 2 MW de capacidade instalada. Esses números variam amplamente, em parte devido às diferentes definições do que constitui uma barragem “planejada” e, especialmente para pequenas barragens, devido às diferenças na disponibilidade de informações dos nove países que detêm parte da Bacia Amazônica. Os planos para futuras barragens também estão em constante evolução.

A primeira barragem foi Coaracy Nunes, construída em Amapá em 1975, seguida por Curuá-Una no Pará em 1977. A primeira “mega” barragem foi a de Tucuruí em 1984.

 

IHU On-Line – Como a construção de novas represas está transformando a Amazônia brasileira?

Philip M. Fearnside – As barragens estão destruindo os rios amazônicos, que são a fonte de sustento para uma grande parte da população tradicional da região. Os reservatórios também expulsam a população que vive nesses lugares. As barragens modificam as características físicas, químicas e biológicas dos rios de forma que os deixam menos biodiversos e menos produtivos em peixes.

 

 

 

IHU On-Line – O atual plano de Energia do Ministério de Minas e Energia propõe a construção de três novas barragens até o final desta década: a Tabajara em Rondônia, a Castanheira em Mato Grosso e a Bem Querer em Roraima. Como o senhor vê essas propostas à luz da experiência de Belo Monte?

Philip M. Fearnside – A experiência de Belo Monte foi instrutiva de muitas formas, não só pelo seu grande impacto, mas também pela maneira como o projeto conseguiu ser realizado apesar de ser “totalmente ilegal” (nas palavras do Ministério Público em Belém). Entre as muitas irregularidades, a mais grave é que os povos indígenas impactados não foram consultados.

Ainda há mais de 20 processos pendentes nos tribunais contra a barragem, e um que foi decidido a favor dos índios, mas a barragem está lá como um fato concreto. A desmoralização da justiça tem consequências graves em minar a confiança de que as leis serão seguidas para barragens e outras obras no futuro, o que dá impulso para seguir com planos que contam com a impunidade.

 

 

Mapa mostra onde a UHE Bem Querer vai barra o rio (Fonte: Pontoon-e)

IHU On-Line – Em um dos seus artigos, o senhor afirma que Roraima, particularmente, não precisa de hidrelétricas. Por que essas hidrelétricas não são desejáveis ou necessárias, na sua avaliação?

Philip M. Fearnside – Roraima tem pouca população e grande potencial para energia solar. Além disso, o governo continua com o plano de construir uma linha de transmissão conectando Roraima com Manaus, de onde há conexão para Tucuruí desde 2013. A linha de transmissão Roraima-Manaus, que é planejada para trazer energia de Tucuruí para Roraima, também seria necessária para as barragens planejadas em Roraima, pois essas não são prioridade por causa do povo de Roraima, mas sim para transmitir energia para Manaus, liberando assim a energia de Tucuruí para ser transmitida até a região Sudeste. A lógica é que Roraima, sendo localizado no hemisfério Norte, tem a época chuvosa invertida em relação ao resto do Brasil e, portanto, pode gerar e transmitir energia durante a estação quando falta água nas hidrelétricas que sustentam as indústrias em outras partes do país. A primeira prioridade é a hidrelétrica de Bem Querer, que teria muitos impactos.

 

 

Mapa do projeto de extensão do Linhão de Tucuruí de Manaus a Boa Vista (em azul e vermelho). A área quadriculada é a Terra Indígena Waimiri-Atroari. Imagem: PRESERVAR – Arqueologia e Meio Ambiente

 

IHU On-Line – Um dos efeitos previstos caso a hidrelétrica de Bem Querer seja construída é a alteração do regime hidrológico rio abaixo. Quais são as consequências dessa alteração?

Philip M. Fearnside – A jusante de Bem Quereráreas úmidas que são reconhecidas pela sua biodiversidade. A alteração do regime hidrológico põe essas áreas em risco. O maior desastre neste sentido foi a hidrelétrica de Balbina, que matou grandes áreas de igapó ao longo do rio abaixo da barragem.

 

IHU On-Line – O senhor já declarou que a construção da hidrelétrica de Bem Querer afetará o rio Branco e o Arquipélago das Anavilhanas. Qual é a importância tanto desse rio quanto do Arquipélago?

Philip M. Fearnside – O Arquipélago das Anavilhanas é uma joia no sistema brasileiro dos parques nacionais. Estas ilhas estão localizadas no rio Negro, logo abaixo da confluência com o rio Branco, que seria barrado com a construção da barragem de Bem Querer. As ilhas se formaram pela deposição dos sedimentos oriundos do rio Branco, e essas ilhas não são fixas, mas continuamente mudam com o balanço entre a deposição e a erosão dos sedimentos. Cortar a entrada de sedimentos com a barragem teria graves impactos sobre as ilhas e a sua biodiversidade única.

 

Loalização do Arquipélago de Anavilhanas (Fonte: Português Vataions)

 

IHU On-Line – De que forma essas hidrelétricas previstas na Amazônia impactam os povos tradicionais, a exemplo dos indígenas? Quais comunidades serão diretamente afetadas por novas hidrelétricas?

Philip M. Fearnside – As comunidades tradicionais são impactadas não apenas quando são inundadas por reservatórios, mas também quando perdem os peixes que as sustentam. É importante lembrar que as hidrelétricas previstas na Amazônia brasileira não são apenas as três que aparecem no atual plano decenal, que vai até 2029, nem no Plano Nacional de Energia, que vai até 2050. As barragens mais polêmicas são deixadas de fora destes planos, e os planos afirmam explicitamente que outras barragens poderiam ser construídas caso “incertezas” com relação à legislação sobre povos tradicionais sejam resolvidas. Isto abriria, por exemplo, o caminho para as duas grandes barragens no rio Tapajós que inundariam terras Munduruku. A terceira barragem no Tapajós, que inundaria comunidades ribeirinhas, já está incluída nos planos pós-2029.

A grande barragem no rio Trombetas, anunciada pelo governo Bolsonaro como carro-chefe do Projeto Barão do Rio Branco, impactaria áreas Quilombolas. O maior “elefante na sala” é Babaquara/Altamira, ou outras barragens a montante de Belo Monte no rio Xingu. Há alguns anos o governo nega que essa barragem ainda esteja planejada, apesar de fortes indicações de que continua como plano. Essa barragem, conhecida como “Babaquara” apesar do seu nome ter sido trocado para “Altamira”, inundaria uma área o dobro daquela sacrificada pela notória barragem de Balbina, quase tudo em terras indígenas. Caso o desmonte do sistema de licenciamento ambiental continue, esse cenário se torna bem provável.

 

 

IHU On-Line – Que tipo de “desinformações planejadas” são divulgadas para justificar a construção de novas hidrelétricas na Amazônia?

Philip M. Fearnside – O caso de Babaquara/Altamira é o maior caso de “desinformação”, como indicado no título do meu trabalho sobre os planos para o rio Xingu. Toda a discussão de Belo Monte simplesmente omitiu os enormes impactos de Babaquara/Altamira, que armazenaria a água para movimentar as turbinas agora já instaladas em Belo Monte. Desinformação é comum, como as muitas afirmações do governo brasileiro de que as barragens no rio Madeira não teriam nenhum impacto na Bolívia e no Peru.

Os custos puramente financeiros também são sistematicamente minimizados: Belo Monte, por exemplo, já custou mais do dobro do que foi inicialmente projetado. Ou seja, hidrelétrica não é “energia barata”, como se afirma. A energia também não é “limpa” no sentido de não emitir gases de efeito estufa, fato demonstrado por meus trabalhos sobre o assunto. A energia é sempre descrita como indo para as lâmpadas e eletrodomésticos nos lares da população, quando na realidade apenas 22-29% da eletricidade no Brasil é para uso doméstico, e as indústrias (como a de alumínio) raramente são mencionadas.

 

 

IHU On-Line – De que forma as energias alternativas são apresentadas e contempladas no Plano de Energia do Ministério de Minas e Energia?

Philip M. Fearnside – O plano atual prevê um aumento substancial de energia eólica, o que é uma mudança boa em comparação com planos anteriores. Enquanto os planos para a energia eólica ainda se concentram na geração terrestre, o plano para 2050 inclui cálculos do enorme potencial da energia eólica na plataforma continental ao longo da costa brasileira. O plano admite que “A capacidade instalada total esperada de eólica em 2050 pode ser ainda maior do que 200 GW .... desde que não seja permitida a expansão de UHEs [usinas hidrelétricas] com interferência em áreas protegidas” (p. 101).

Em outras palavras, o Brasil poderia obter toda a eletricidade que demanda, aproveitando este recurso eólico sem ter de permitir que hidrelétricas sejam construídas nas Terras Indígenas e unidades de conservação da Amazônia. Energia solar é considerada, mas é evidente que não tem a prioridade que merece. A lacuna mais gritante é na área de conservação de energia. Desde o Plano Nacional de Mudança Climática - PNMC de 2008, é objetivo do governo acabar com os chuveiros elétricos que, segundo o PNMC, usam 5% de toda a eletricidade no Brasil, mas basicamente nada foi feito. E nem se fala em parar de exportar energia na forma de alumínio e outros produtos eletrointensivos.

 

 

IHU On-Line – O senhor acompanha os projetos de hidrelétricas no Brasil há muitos anos. Que diferenças e semelhanças percebe na condução desses projetos no governo atual em comparação com os anteriores?

Philip M. Fearnside – O atual governo continua com a prioridade para barragens com “grandes reservatórios”, no lugar de barragens a fio d’água, que começou em junho de 2013, com o anúncio da presidente Dilma, e que continuou sob o presidente Temer. A grande barragem no plano Barão do Rio Branco mostra isto. Este plano também demonstra a desconsideração dos povos tradicionais. O projeto de lei que o presidente Bolsonaro submeteu ao Congresso Nacional, abrindo Terras Indígenas para hidrelétricas, além de mineração, agronegócio e outras formas de exploração por não índios, é uma indicação de que a situação poderia piorar bastante.

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Philip M. Fearnside – É importante lembrar as barragens brasileiras planejadas nos países vizinhos. O acordo Brasil-Peru de 2010 previa seis grandes barragens na Amazônia peruana, a serem construídas por empreiteiras brasileiras com dinheiro do BNDES, e principalmente para exportar eletricidade para o Brasil. Na Bolívia há duas com o mesmo tipo de arranjo. Na Guiana se cogita uma que poderia ser interligada com a linha de transmissão Roraima-Manaus. Todas essas barragens teriam grandes impactos ambientais e humanos, e esses outros países geralmente têm proteções legais ainda mais fracas do que o Brasil, o que seria parte do raciocínio para construir essas obras lá fora. Várias dessas barragens estão listadas no Plano de Expansão de Energia como possíveis fontes de energia para o Brasil até 2050.

 

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