A filosofia do século XX está falida; é preciso uma paideia contemporânea. Entrevista especial com Rossano Pecoraro

A filosofia faliu porque foi malsucedida; enganou e enganou-se, afirma o filósofo italiano radicado no Brasil

Foto: Pixabay

Por: Patricia Fachin | 31 Outubro 2020

Os diferentes fenômenos que observamos nos últimos anos, potencializados durante a crise pandêmica, como o negacionismo científico, a indiferença, a disseminação de fake news e o autoritarismo político, escancaram “a inadequação e a falência do pensamento filosófico da atualidade”, afirma o filósofo Rossano Pecoraro à IHU On-Line.

 

Segundo ele, comportamentos sociais que negam a ciência, pregam o relativismo, defendem o autoritarismo e propagam fake news são resultado da preponderância de ideias e práticas que, a partir da década de 1960, passaram a dominar o cenário sociocultural, as quais foram germinadas no período pós-segunda guerra mundial. “Um ponto de partida importante, embora não seja o único, é a situação da sociedade e da cultura europeia pós-segunda guerra mundial na qual os alicerces de uma tradição secular, Razão, Progresso, Esclarecimento, por exemplo, são radicalmente criticados e até mesmo destruídos. Eles se tornam réus. São acusados e condenados por terem sido cúmplices dos horrores do Novecento: fascismo e nazismo, o Holocausto, a Shoah, Hiroshima e Nagasaki, a bomba atômica, o colonialismo falo-logo-cêntrico etc. Sob a égide da famosa interrogação ‘é possível pensar depois de Auschwitz?’, manuais e comentadores definem essa época como a época da ‘crise’, da ‘morte’, do ‘fim’, da ‘autorrefutação’, do ‘ultrapassamento’ da filosofia, ou melhor, da metafísica greco-moderna. A jaula opressora e violenta da tradição é destruída. Uma vez identificados os carrascos, trata-se de dar voz às vítimas”, explica.

 

Essa virada no pensamento filosófico desde o pós-guerra, esclarece, teve, entre outras consequências, a recusa de noções fundamentais, como racionalidade, verdade, justiça e valores com pretensão de universalidade, que são essenciais para o desenvolvimento e o florescimento da cultura humana e de sociedades mais éticas. “Em resumo, o pensamento contemporâneo jogou fora o bebê junto com a água suja do banho em nome de uma ação (hipocritamente) revolucionária que em um punhado de anos – com a cumplicidade das ferramentas e da regressão narcísica típicas da era digital – levou à ascensão de novos e inesperados populismos autoritários, à democratização da impunidade, da violência e dos fascismos sociais (e não somente políticos ou estatais) e à legitimação da pós-verdade (vulgo fake news)”, assegura. Depois de cinco décadas sucessivas de críticas à filosofia anterior ao pós-guerra, Rossano Pecoraro é categórico: “Como podemos nos surpreender se o pensamento filosófico contemporâneo nos repete há décadas que a verdade, o conhecimento e os valores éticos são patéticos, insignificantes, opressivos, ilusórios, pura ficção, fonte de escravidão, violência e horrores?”

 

Nesta entrevista, concedida por e-mail para a IHU On-Line, o filósofo reflete sobre os efeitos do pensamento filosófico do século XX na sociedade atual e defende a urgência de uma nova racionalidade e de uma nova paideia. “Se me permite a franqueza, penso que nada é possível sem uma nova racionalidade, uma outra ética e um outro saber. (…) Nada é possível se, apenas para dar alguns poucos exemplos, não encontramos a coragem de dizer a verdade (parresia) que certa tradição greco-romana nos ensinou; se não nos engajamos, desde já, na criação de uma paideia contemporânea – formação e educação humana, melhor ainda, o fim em si da educação, o ideal de perfeição moral, cultural e civil a que o homem deve almejar”, conclui.

 

Rossano Pecoraro (Foto: Arquivo pessoal)

Rossano Pecoraro é graduado em Filosofia e doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. Atualmente, leciona na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO.

 

A entrevista foi originalmente publicada aqui no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no dia 01-09-2020.

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Em artigo recente o senhor analisou a crise pandêmica e seus desdobramentos à luz da crise da filosofia. Pode nos explicar como a crise atual revela igualmente a crise da filosofia, ou o “fracasso da filosofia”, praticada no último século?

Rossano Pecoraro - Diria que meu esforço foi mostrar como a crise pandêmica, com as suas implicações sociais, éticas e políticas, revelara a falência da filosofia dominante do nosso tempo. Não destacaria, apesar da sua pertinência e correção histórica, o termo “crise”. O que se experiencia hoje não é uma crise – isto é, uma fase decisiva de uma época histórica, institucional ou conceitual caracterizada por transformações ou mudanças repentinas que podem ter efeitos nefastos ou benéficos –, mas sim a falência, a inadequação estrutural e sistêmica do pensamento filosófico contemporâneo, vale dizer, as ideias e as práticas que a partir dos anos 1960 do século passado dominaram, e dominam, grande parte do nosso cenário sociocultural. É complexo, senão impossível, apresentar de maneira compreensível e argumentada o diagnóstico histórico-conceitual que vem norteando os meus estudos recentes num texto de circunstância, como esse que você citou, ou numa entrevista. Mas não vou me furtar, é claro, à responsabilidade de indicar ao menos um vislumbre de resposta.

Um ponto de partida importante, embora não seja o único, é a situação da sociedade e da cultura europeia pós-segunda guerra mundial na qual os alicerces de uma tradição secular, Razão, Progresso, Esclarecimento, por exemplo, são radicalmente criticados e até mesmo destruídos. Eles se tornam réus. São acusados e condenados por terem sido cúmplices dos horrores do Novecento: fascismo e nazismo, o Holocausto, a Shoah, Hiroshima e Nagasaki, a bomba atômica, o colonialismo falo-logo-cêntrico etc. Sob a égide da famosa interrogação “é possível pensar depois de Auschwitz?”, manuais e comentadores definem essa época como a época da “crise”, da “morte”, do “fim”, da “autorrefutação”, do “ultrapassamento” da filosofia, ou melhor, da metafísica greco-moderna. A jaula opressora e violenta da tradição é destruída. Uma vez identificados os carrascos, trata-se de dar voz às vítimas. É uma das fases mais intensas, emancipatórias e libertárias da história da humanidade. É isso que impulsiona a produção acadêmica e intelectual dos mais influentes pensadores dessas décadas: Adorno e seus companheiros da Escola de Frankfurt, Deleuze, Foucault, Derrida, Vattimo, Rorty, Lacan, pós-estruturalistas, pós-modernos, pós-metafísicos e afins.

 

 

A radicalização que criminaliza uma geração

O ponto é que, quando os Mestres falecem e as novas gerações de estudiosos entram em cena, a progressiva radicalização do processo que criminaliza uma tradição inteira chega a ridicularizar e cancelar noções e perspectivas essenciais – racionalidade, verdade (não absoluta nem totalitária, obviamente), justiça, valores, não digo universais, mas ao menos universalizáveis etc. – sem as quais nenhuma sociedade, nenhuma ética, nenhuma política consegue se sustentar por muito tempo. Em resumo, o pensamento contemporâneo jogou fora o bebê junto com a água suja do banho em nome de uma ação (hipocritamente) revolucionária que em um punhado de anos – com a cumplicidade das ferramentas e da regressão narcísica típicas da era digital – levou à ascensão de novos e inesperados populismos autoritários, à democratização da impunidade, da violência e dos fascismos sociais (e não somente políticos ou estatais) e à legitimação da pós-verdade (vulgo fake news).

A pandemia, ainda em curso, revelou isso de maneira escancarada e praticamente universal: negacionismos, indiferença ou até escárnio diante das recomendações médicas, conflitos de interesses gigantescos, jeitinhos variados para driblar a lei, ausência de fiscalização, implementação de medidas confusas, contraditórias e autoritárias... Como podemos nos surpreender se o pensamento filosófico contemporâneo nos repete há décadas que a verdade, o conhecimento e os valores éticos são patéticos, insignificantes, opressivos, ilusórios, pura ficção, fonte de escravidão, violência e horrores?

 

IHU On-Line - A filosofia ainda não superou a crise de identidade pela qual passou no século XIX? Por quê?

Rossano Pecoraro - Não é simples identificar com exatidão os períodos de crise, a sua intensidade e os seus motivos. Na minha visão, o que você chamou com toda razão de crise de identidade da filosofia tem data de início e de fim: se dá no pós-guerra, na segunda metade do século XX e termina no limiar no terceiro milênio. Como tentei esclarecer anteriormente, essa fase de análise crítica do projeto filosófico, político e social da Modernidade foi extremamente importante para desmascarar as pretensões, os erros e as violências desse projeto. O problema surge quando, repito, se joga fora a água suja junto com o bebê. Ou seja, quando em vez de corrigir ou reformular noções, conceitos, questões etc., a filosofia abandona a luta e se declara “fraca”, “relativista”, multi-tudo, contingente, parcial, mero discurso ou pior ainda, opinião, “gênero literário” e por aí vai.

Lembro-me da ironia de Slavoj Žižek que, Em defesa das causas perdidas, afirma que vivemos em uma era na qual, apesar da fragmentação da cena ideológica, há um consenso de fundo, vale dizer, que tudo é relativo e contingente, que “a época das grandes narrações acabou” e que se faz necessário e urgente adotar um “‘pensamento fraco’ contraposto a todo fundacionalismo, um pensamento atento à textura rizomática da realidade”. O mesmo deve valer para a política, para a ação política e revolucionária que deve ser inspirada não pelo desejo de construir sistemas universais e “projetos de emancipação globais”, nem pela “imposição violenta das grandes soluções”, mas sim por “formas específicas”, locais, contingentes etc. de resistências e de intervenção.

Quanto à sua pergunta sobre a crise de identidade da filosofia, creio que ela deva ser referida a uma determinada época, a um determinado contexto histórico e temático, isto é, à cultura e ao pensamento da segunda metade do século passado, grosso modo, do início dos anos 60 até o final dos anos 90. Depois disso, nem é mais possível falar em crise. Sei que o que estou para dizer pode soar polêmico e provocativo. Mas talvez esteja na hora de abandonar, entre outros hábitos intelectuais, o filosoficamente correto, e dialogar mais, com mais intensidade. Então: a filosofia do tempo presente, a filosofia da nossa atualidade está prestes a implodir (para usar um termo de Maurizio Ferraris no livro Manifesto del Nuovo Realismo). Ela arrasta-se; cansada, extenuada, incapaz de se fazer ouvir, totalmente inábil, como afirma Roberto Esposito em Il pensiero vivente, para formular “modelos de racionalidade universais ou ao menos universalizáveis”. Não se trata de crise, em suma, mas (se você me permite retomar o meu termo) de falência. De fracasso se preferir, de total inadequação e de total esterilidade.

 

 

Causas da falência

As causas? Talvez a mais importante seja o processo de criminalização sistematicamente orquestrado e realizado pelo pensamento único da segunda metade do século XX, de uma configuração específica do pensar e do agir que, há mais de dois milênios e meio, um punhado de gregos que habitavam terras colonizadas definiu como philo/sophia, amor pela sabedoria e pela verdade, isto é, de maneira mais efetiva e menos glamorizada, como busca rigorosa e racional de “algo” passível de ser “usado” em proveito da humanidade, como escreveu Platão no Eutidemo. Ora, o que se conduziu debaixo de vara foi exatamente a tradição greco-moderna, ou melhor, os quatro pontos cardeais – logos, busca da verdade, argumentação, universalidade – a partir dos quais ela foi se articulando ao longo dos séculos.

Alguns exemplos? Bem... No banco dos réus, foi posta a ideia cartesiana de que a filosofia é conhecimento seguro e indubitável capaz de oferecer ao ser humano princípios e critérios gnosiológicos e morais; a concepção do Iluminismo para o qual a filosofia é esforço racional para a libertação e o progresso da humanidade; a visão kantiana de uma filosofia comprometida com a educação e a política que tem como finalidade iluminar e dirigir o caminho da humanidade rumo ao melhor e à felicidade universal.

 

 

IHU On-Line - O senhor tem chamado atenção para um fenômeno que ocorre no interior da filosofia, mas não só: a ditadura da razão X a ditadura da opinião. Quais são as causas desse fenômeno?

Rossano Pecoraro - Há uma sólida relação causal entre o domínio da opinião, as fake news, os negacionismos científicos e os autoritarismos do nosso tempo, que a pandemia agravou de maneira significativa. Pois é, a famigerada opinião... (doxa, opinio- onis). Não é à toa que desde as suas origens a filosofia a tenha criticado com força. Nada de particularmente complexo ou difícil de entender e de achar. É só folhear um manual de história da filosofia ou um bom dicionário de filosofia. Aí encontraremos uma série de definições autoexplicativas: crença, asserção meramente subjetiva, conhecimento sem garantia de validade, afirmação sem fundamento, conjectura próxima da ignorância etc. A opinião, em suma, é a inimiga número um da ciência, da racionalidade e da verdade. Parmênides opunha as opiniões (falsas) dos mortais à verdade; Cícero a definia como exposição ou a aceitação de uma ideia falsa, enganosa e ilusória; Tomás de Aquino como declaração não provada; Hegel como representação subjetiva, pensamento casual, imaginação.

Toda opinião, é óbvio, tem que ser respeitada. E temos que lutar, sempre, para que ela possa ser expressa livremente, sem qualquer tipo de censura, cerceamento, bullying, cancelamento etc. Mas opinião não é filosofia, não é ciência, não é ética.

 

Verdades absolutas e necessárias

O pensamento do século XX criticou, com toda razão, a convicção de que as verdades da ciência e da filosofia fossem “absolutas” e “necessárias”. Mas os resultados não foram exatamente aqueles imaginados e desejados por professores e acadêmicos. Retornamos, mais uma vez, à água suja e ao bebê. Entre as culpas da filosofia contemporânea (desde a minha adolescência filosófica me pergunto se, em algum momento, não houve dolo; mas enfim, essa é uma outra história) não está a grandiosa crítica da Modernidade realizada pelos Mestres, mas sim o desprezo pela História da filosofia e a sucessiva substituição do logos pela doxa, da argumentação racional pela opinião, ignorando deliberadamente a grande e incômoda lição de Nietzsche, posteriormente retomada por Derrida, sobre a inutilidade e o perigo de inverter as dicotomias da tradição, substituindo o termo ou conceito opressor pelo termo ou conceito oprimido, mas deixando intacto o mecanismo dicotômico, ou seja, no caso em questão, limitando-se a substituir a “ditadurada razão pela ditadura da opinião (manipulada e violenta, mas extremamente sedutora e sereia de liberdade e emancipação).

Trata-se, pois, de não somente inverter as dicotomias, mas de quebrar os ossos do mecanismo opositivo, estrutural e sistêmico, que impede qualquer tipo de transformação ou revolução tanto individual quanto coletiva. À destruição da Razão deve seguir a destruição da opinião. Somente assim, talvez, a ditadura e a opressão de “algo” sobre outro “algo” poderá ser dissolvida. Não foi isso que Nietzsche nos revelou no Crepúsculo dos Ídolos? O “mundo verdadeiro” — conceito que não serve mais para nada, patético, inútil, nocivo – é refutado e eliminado. O que nos restaria? O mundo aparente responderia com a sua tola alegria, o “último homem”, aquele que vive dando pulinhos e piscando o olho. Mas não! “Com o mundo verdadeiro abolimos também o mundo aparente!”, afirma o Nietzsche-Zaratustra.

 

 

IHU On-Line - No artigo, o senhor diz que os fatos objetivos de hoje são menos influentes que opiniões e mentiras, e relaciona esse cenário à filosofia pós-moderna que “nos repetiu por décadas que a verdade e o conhecimento são opressivos, ilusórios, ficção…”. Pode nos explicar quais são as bases filosóficas que nos conduziram a este momento, em que as opiniões se sobrepõem aos fatos?

Rossano Pecoraro - Agradeço pela pergunta. Enfrentá-la me permitirá aprofundar um pouco mais o sentido do discurso que estou tentando articular neste nosso diálogo. Como tentei demonstrar em outros textos, não é necessário um grande esforço de reconstrução histórica para diagnosticar a falência (e não a crise) da filosofia do nosso tempo. Não se trata, pois, da clássica e cíclica reflexão crítica da filosofia sobre si mesma, sobre a sua identidade e as suas tarefas que, pelo menos desde Aristóteles, caracterizou várias fases do seu desenvolvimento, mas de algo muito diferente e muito mais sério. Não estamos, para retomar o fio condutor inicial dessa entrevista, diante da “situação” que o pensamento da segunda metade do século XX analisou através das noções de crise, fim, morte, desconstrução, enfraquecimento etc. da filosofia. Não, falir (como mostra sua origem latina fallĕre) significa ser malsucedido, enganar e enganar-se; e também não ter êxito, ser incapaz de arcar com os seus compromissos, ser inadequado. Ao considerar-se parcial, interpretativa, contingente, local, fraca, relativista, gênero literário, opinião ou achismo mais ou menos fundamentado etc., a filosofia não pôde fazer outra coisa a não ser declarar a sua bancarrota (fraudulenta?) e a sua impotência para formular, e legitimar, paradigmas de racionalidade de alguma maneira “universais”, capazes de fornecer uma orientação ética, social e política.

 

Um nome incômodo: pós-modernidade

Sendo mais preciso, é possível dizer que tudo isso tem nome. Um nome próprio imponente e incômodo: pós-modernidade e pós-moderno, ou seja, um período histórico e um conceito de extraordinário sucesso e de forte impacto sociocultural. Como premissa, vamos nos perguntar: que tipo de relação existe entre filosofia e sociedade? Que relação existe entre a criação ou o desenvolvimento de um pensamento ou um conjunto de teorias em círculos mais ou menos restritos (uma universidade por exemplo) e o ambiente histórico e social mais amplo que ela toca e infecta?

Evidentemente existe uma ligação entre filosofia e sociedade, entre a construção de uma ideia ou a formulação de uma teoria e seus efeitos na opinião pública. Estamos discutindo, atente-se, não questões e perspectivas de teoria da comunicação ou da relação entre comunicação jornalística e cultural, propaganda, massas e redes sociais, mas algo muito mais sutil e perverso, ou seja, relação entre a ideologia dos centros de poder acadêmico-cultural, a imprensa (tradicional e alternativa) e a sociedade. Não estamos falando das estratégias de comunicação e controle de Goebbels ou de Stalin, de um partido de direita ou de um movimento de esquerda, mas do caso do pleno sucesso social e cultural – hoje diríamos um sucesso viral – de uma ideia ou teoria.

Para esclarecer esse ponto podemos recorrer à noção de “ideias-força” descritas por Jessé Souza no livro A elite do atraso. Trata-se das ideias que os detentores do poder usam para convencer a classe média e as pessoas com o objetivo de realizar os seus interesses graças ao imenso efeito de amplificação da mídia. [Segundo Souza,] É “aquele tipo de pensamento que conduz uma sociedade em um sentido ou em outro e é restrito a intelectuais e especialistas treinados. A mídia retira seu poder de fogo desse reservatório de ideias dominantes e consagradas. Ela é limitada no seu alcance pelo prestígio que essas ideias e seus autores, que ela veicula, desfrutam em uma sociedade. Daí que seja fundamental perceber como as ideias são criadas e qual o seu papel na forma como a sociedade vai definir seu caminho específico. Não apenas a mídia, mas também os indivíduos e as classes sociais vão definir sua ação prática, quer tenham ou não consciência disso, a partir desse mesmo repositório de ideias (...). Toda a nossa ação no mundo é influenciada, quer saibamos disso ou não, por ideias. São elas que nos fornecem o material que nos permite interpretar nossa própria vida e dar sentido a ela”.

 

 

As ideias da pós-modernidade se impuseram sem os resultados emancipatórios

Maurizio Ferraris, no Manifesto, vai na mesma direção quando, ao diagnosticar o “esvaziamento” muito próximo da “implosão” de pós-modernidade, “pensamento fraco”, “ironia liberal” e afins, afirma, com razão, que isso não se deve ao fracasso de uma ideia, de um projeto filosófico e ideológico, mas sim ao seu sucesso, “à sua realização plena e perversa”, tanto “social” quanto “política”. As ideias da pós-modernidade se impuseram totalmente, mas escreve Ferraris: “sem os resultados emancipatórios profetizados pelos professores”, que ele acusa, mais uma vez com razão, mas sem tratá-los com o rigor necessário, de “cumplicidade ideológica” com populismos, desvios mais ou menos autoritários e assim por diante.

Mais uma análise importante para o debate é aquela formulada por Roberto Esposito na introdução ao livro Pensamento vivo (já citado), onde são examinadas as três tendências que compõem a contemporaneidade filosóficatradição analítica, teoria crítica e hermenêutica, pensamento pós-moderno/pós-estruturalista e desconstrução. Todas elas mostram sinais claros de “incerteza” e “cansaço”, revelam uma profunda “crise” causada por duas ordens de fatores.

O primeiro, para Esposito de menor importância (para mim, ao contrário, esse é um ponto decisivo), deriva de problemas contingentes e ocasionais: o desaparecimento dos grandes clássicos do pensamento do século XX, a ausência de mudanças geracionais, a incapacidade de se renovar, a estagnação teórica, a produção repetitiva, autorreferencial e frequentemente obscura.

O segundo identifica no “primado da linguagem” (em todos os seus campos de aplicação: ontológico, epistemológico, textual) a causa fundamental da “criseda filosofia. Com efeito, uma vez subordinada à linguagem – a seus jogos, dialetos, famílias de frases, grupos de significados, contextos etc. – e, portanto, uma vez declarada a sua inabilidade para formular “modelos de racionalidade”, à filosofia não resta outro espaço a não ser o da sua “autonegação ou do seu prosseguimento extenuado”.

 

 

Um último apontamento histórico. Como é notório em 2016, o Oxford Dictionary elegeu a pós-verdade como a palavra internacional do ano com a seguinte definição: relativa a, ou denotando, “circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal”. Alguns anos depois, a situação parece ter mudado muito. Não se trata mais de uma circunstância em que fatos objetivos são menos influentes que uma opinião ou uma mentira. Em vez disso, estamos diante da total ausência de qualquer referência não apenas à verdade, mas também à possibilidade de que “algo” verdadeiro, real e factual possa existir.

Como podemos nos surpreender se a pós-modernidade nos diz há décadas (tornando-nos estúpidos como o famoso caracol de Horkheimer e Adorno na Dialética do esclarecimento, mas com outra estratégia: não a violência que nos faz retirar para o abrigo interno, mas a hipérbole de opiniões que nos seduz e nos paralisa) que a verdade e o conhecimento são patéticos, insignificantes, opressivos, ilusórios, pura ficção, fonte de escravidão, violência e horrores?

E, ainda, a opinião não precisa sempre de uma “verdade” que a sustente? A transformação da realidade “real” não produz sempre uma realidade com seus critérios de validade, de consenso e de gestão do poder? Portanto, não deveríamos nos interrogar, novamente e através de diferentes perspectivas de análise, sobre as responsabilidades da teoria e dos teóricos?

 

 

IHU On-Line - Como a filosofia pode sair desta situação de falência?

Rossano Pecoraro - Não sei. É duro admitir isso, mas não saberia nem por onde começar. Como sair da falência? Como recuperar a confiança da sociedade? Como provar que não agimos com dolo? Que não fomos cúmplices nem coniventes?

 

IHU On-Line – De outro lado, que contribuições a própria filosofia pode dar para nos ajudar a compreender o momento que estamos vivendo?

Rossano Pecoraro - A Filosofia (com F maiúscula) é, na minha visão, essencialmente pergunta, questionamento, dúvida. Seria interessante analisar com mais atenção uma espécie de “a priori” que impera em grande parte da comunidade filosófica, ou seja, a convicção 1) de que a filosofia é qualquer coisa; 2) que ela se ocupa com qualquer assunto/temática; 3) que sua tarefa é dar respostas ou ao menos perspectivas de solução a problemas já dados.

Trata-se de um “princípio” a meu ver extremamente tóxico uma vez que castra qualquer tentativa revolucionária (não necessariamente no sentido ideológico deste termo) de transformação da realidade existente. Como escrevi alguns anos atrás num texto apresentado na Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia - Anpof, esterilidade, blablaísmo, mimimiísmo e doxismo são os resultados de concentrar-se no passado (como legado ou herança maldita e opressora) e no futuro (como “não lugar” a ser construído) e de considerar a filosofia como uma espécie de conhecimento/saber taumatúrgico, que com sua opinião sempre correta e religiosamente ecumênica está aberta ao tudo vale temático, deixando-se invadir pelas infinitas alteridades (que na maioria das vezes não estão minimamente interessadas em se aproximar ou dialogar com ela de maneira séria e rigorosa). Pelo contrário, o Filósofo e a Filósofa são os Mestres e as Mestras das perguntas; do pensar no agora, do filosofar no presente. São os Mestres e as Mestras da ação, não da reação.

Como afirmou Alain Badiou durante o diálogo público de Viena (2002) com Slavoj Žižek, “o filósofo cria os problemas; ele é um inventor de problemas. O verdadeiro filósofo decide por si próprio quais são as questões relevantes. É ele a sugerir novas questões para os outros. A filosofia é sobretudo idealização de novos problemas”. É evidente que desse axioma deriva o fato de que o filósofo intervém quando vislumbra em uma “situação” (política, histórica, afetiva, social, científica etc.) “determinados elementos, sinais, que impõem a identificação de um novo problema. O filósofo se insere lá onde entrevê, no presente, os signos que indicam a necessidade de enuclear um novo problema”.

 

 

IHU On-Line - A filosofia ainda pode fornecer uma orientação ética, social e política universal para o mundo de hoje?

Rossano Pecoraro - Pelas razões expostas até agora, é claro que não. A sua falência se deve exatamente à sua esterilidade crônica; à sua incapacidade, estrutural e sistêmica, de fornecer orientações, ferramentas, argumentos, “valores morais” (para usar a expressão de Michelle Obama no recente discurso na convenção democrata dos EUA) para transformar a sociedade e a política.

 

IHU On-Line - Esta grande crise que estamos vivendo também pode significar um reposicionamento da filosofia e um reconhecimento da sua importância em relação à ciência?

Rossano Pecoraro - Não. A emergência pandêmica, repito, não fez outra coisa a não ser escancarar a inadequação e a falência do pensamento filosófico da atualidade. Não consigo entrever de que maneira poderia acontecer esse “reposicionamento” ao qual você se refere.

Quanto às relações entre filosofia e ciência, uma vez que os dois saberes nascem e se desenvolvem juntos e que há incontáveis escritos sobre isso, é menos complexo abordar a questão que você propõe. Em primeiro lugar, creio que é necessário retomar o debate, melhor, o diálogo, que foi violentamente interrompido em algum momento do século passado, e encarar, de uma maneira revolucionária e um tanto anárquica, os textos que marcaram esse diálogo (polêmico, sem dúvida) entre filosofia e ciência.

 

 

IHU On-Line - Como deve se dar a relação da filosofia com a ciência?

Rossano Pecoraro - Talvez investigando sem preconceitos a sua origem comum. Ambas se sustentam em demonstrações e argumentos públicos e verificáveis; possuem um método rigoroso e um certo grau de certeza; são inimigas da opinião; trabalham, em níveis e intensidades diferentes, com as noções de objetividade, verdade, descrição, experiência, totalidade, sistema; visam à elaboração de critérios, princípios, orientações, recomendações universais ou pelo menos universalizáveis.

Não é muito difícil constatar que pouco sobrou dessas configurações do pensar e do agir humano após o longo processo de criminalização às quais foram submetidas e que, sem sombra de dúvida, contribuiu para fortalecer as tendências ou os instintos violentos, egoicos, autoritários e racistas que devastam a sociedade, a política, o sistema judiciário, a polícia etc.

 

 

IHU On-Line - Por que o senhor considera ingênuas e enganosas as análises segundo as quais o mundo será transformado pós-pandemia?

Rossano Pecoraro - Exatamente pelas razões que expus ao longo da nossa conversa. Acreditar e anunciar que um vírus pode mudar o mundo e a sociedade é pouco menos que uma profecia. Arriscada, ingênua e enganosa. A única e funesta mudança tem ocorrido no microcosmo de todas as famílias que tiveram um ente querido ceifado pelo novo coronavírus; nos lares das comunidades onde pessoas são obrigadas a se amontoar em quartinhos precários, tendo que lidar ao mesmo tempo com o isolamento social, o desemprego, a violência da milícia, do tráfico e da polícia, a letalidade do vírus, a ausência de uma assistência social e sanitária decente, a fome e o choro inocente das crianças.

 

Pouco ou nada mudou no macrocosmo

No macrocosmo da sociedade e da política, porém, as coisas são diferentes. Ao longo de milênios, povos e nações foram castigados por emergências sanitárias globais e epidemias. Mas a História nos ensina que pouco ou nada mudou nas estruturas sociais e políticas pós-crise. Os acontecimentos em vários lugares do mundo e no Brasil hoje parecem, de modo incipiente e sinistro, sustentar essa perspectiva. Não houve transformações substanciais na sociedade pandêmica. Sim, estamos usando mais as tecnologias de comunicação e fornecendo como nunca dados e informações sensíveis aos Grandes Irmãos das Redes. Sim, ainda temos algumas (poucas) restrições sociais, escolas e universidades (no Brasil) não têm aulas presenciais, usamos maciçamente álcool em gel, as máscaras são onipresentes, embora usadas de maneira perigosamente errada. Mas a sociedade não mudou. A política não mudou. As nossas atitudes e posturas individuais em relação aos outros e à coletividade não mudaram.

 

 

IHU On-Line - Como imagina que será o papel das humanidades e, em particular, da filosofia, nas universidades daqui para frente? Que caminho é preciso percorrer nas universidades em relação às humanidades?

Rossano Pecoraro - O futuro não tem muita relevância para mim. Pensar o futuro não me interessa. Faz-se necessário pensar o agora. O futuro se idealiza (não se constrói: o verbo construir, nesse caso, cheira sempre à opressão e demagogia) exclusivamente no presente, a partir do presente no seu diálogo crítico com o passado. Revoluções e transformações radicais se dão no “tempo de agora”. O grande problema, é claro, é o que fazer e como fazê-lo. Não tenho respostas prontas nem saberia apontar para algo mais concreto. Mas, se me permite a franqueza, penso que nada é possível sem uma nova racionalidade, uma outra ética e um outro saber. Nada é possível se, apenas para dar alguns poucos exemplos, não encontramos a coragem de dizer a verdade (parresia) que certa tradição greco-romana nos ensinou; se não conseguimos quebrar as correntes da “servidão voluntária” que anestesiam nossos corpos e nossas mentes; se não nos engajamos, desde já, na criação de uma paideia contemporânea – formação e educação humana, melhor ainda, o fim em si da educação, o ideal de perfeição moral, cultural e civil a que o homem deve almejar.

 

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