A razoabilidade das instituições públicas na mira do racional. Entrevista especial com Fernando Fontainha

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Por: Ricardo Machado | 01 Outubro 2016

Poucas carreiras públicas permitem uma ascensão tão vertiginosa e a chegada ao teto salarial quanto a do Judiciário. A investidura nesses cargos, no entanto, se dá, simplesmente, por meio de uma prova, sem levar em conta a formação — o histórico acadêmico e as experiências profissionais — daqueles que irão assumir cargos públicos. “Hoje são aprovados nos concursos mais difíceis quem é bom de ‘concurso público’, para resumir a história. Não é só que estamos dando poder demais a indivíduos sem o menor controle democrático, o problema é que estamos montando uma corporação de pessoas absolutamente desconectadas do sentido de vocação e excelência profissional, porque as práticas profissionais reais são completamente alheias ao meio de investidura”, critica o professor e pesquisador Fernando de Castro Fontainha, em entrevista por telefone à IHU On-Line.

Ao analisar a Lava Jato, Fontainha considera que o processo penal tem pouca novidade e muitos aspectos tradicionais. “A Lava Jato trabalha com dispositivos que são relativamente simples e bastante antigos, como a prisão preventiva, um artifício jurídico antigo, combinado com algo novo, que é a delação premiada. É isso que tem determinado o sucesso da Lava Jato”, descreve. Para o pesquisador, a questão central em jogo é que o Judiciário tem operado por uma lógica do timing político e que para o bem das instituições deveria ser, a todo o custo, evitada. “É claro que a justiça não é cega no sentido de que os promotores e juízes não têm preferências, opiniões, cores políticas, preconceitos. Todos eles têm, mas as decisões não podem ser fundamentadas, embasadas, nos seus preconceitos, afetos e desafetos e opiniões pessoais”, ressalta.


Fernando Fontainha | Foto: UERJ

Fernando de Castro Fontainha é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, realizou mestrado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense – UFF e doutorado em Ciência Política pela Université de Montpellier, na França. Atualmente é professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – IESP/UERJ.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que medida se pode afirmar que o Judiciário hoje se prefigura como um “superpoder”? Quais os riscos que se pode incorrer com essa concepção?

Fernando de Castro Fontainha - Esta questão se desdobra de duas maneiras. A primeira é de ordem institucional. Estamos falando de um sistema de justiça e para entender o Judiciário é preciso entender, no mínimo a tríade advocacia-ministério público-judiciário. Mas o que seria um superpoder? Existe um argumento de que o Judiciário, além de exercer a função judicante do Estado, tem exercido funções do Executivo, coordenação e execução de políticas públicas, e do Legislativo, ou seja, o Judiciário tem inovado no que toca a produção de normas que regulam a política e a vida social. Podemos chamar de um superpoder na medida em que não temos um Executivo que julga e não temos um Legislativo que executa políticas públicas.

Um segundo desdobramento desta questão, que não toca a questão constitucional, mas a questão corporativa, é que o Judiciário e o Ministério Público – MP também se configuram um superpoder pela quantidade de regalias e privilégios que envolvem a condição de seus membros. Estamos falando de uma carreira em que o salário inicial está em torno dos R$ 27 mil, então muito cedo na carreira os empregados do Judiciário chegam ao teto constitucional, isso sem contar o auxílio-moradia, o 13º e 14º salários, sem contar o fato de que eles têm, como em raras carreiras do setor público e privado, dois meses de férias mais o recesso. A quantidade de privilégios os transforma, também, em um superpoder. Difícil imaginar uma profissão em que alguém comece ganhando R$ 27 mil, sobretudo em um país em que o salário mínimo é do valor que conhecemos. Não precisa fazer muitas digressões para compreender que qualquer carreira pública no Brasil, pagar o que paga e sustentar a quantidade de regalias existentes, só pode ser descrita com a expressão usada na pergunta. Então, nesses dois aspectos que eu descrevi, são, sim, um superpoder.

Desequilíbrio

Isso coloca para nós um desequilíbrio muito grande e nas mãos de um poder sobre o qual não há controle democrático. Minhas pesquisas se voltam aos concursos públicos e as inferências apontam para o fato de que os concursos públicos são autocentrados. Sequer temos um concurso público que avalie os profissionais ao longo de uma formação ou em função das atribuições que o cargo vai requerer. Hoje são aprovados nos concursos mais difíceis quem é bom de “concurso público”, para resumir a história. Não é só que estamos dando poder demais a indivíduos sem o menor controle democrático, o problema é que estamos montando uma corporação de pessoas absolutamente desconectadas do sentido de vocação e excelência profissional, porque as práticas profissionais reais são completamente alheias ao meio de investidura. Paradoxalmente é reivindicado por eles como algo superior à investidura política, ou seja, a eleição, crendo que as eleições são fruto de uma política putrefata e que os concursos são verdadeiros medidores do mérito da excelência. Nem um, nem outro são verdades.

IHU On-Line - Como o senhor compreende a ideia de judicialização da política a partir da experiência da Operação Lava Jato? Quais tensões emergem a partir da judicialização das relações sociais e políticas no Brasil?

Fernando de Castro Fontainha – A Operação Lava Jato [1] não toca na questão da judicialização das relações sociais, mas da política. Essa questão é difícil de responder porque ela toca em um conceito, bastante debatido, pelo qual não tenho grande simpatia, “judicialização”. Esse conceito mobiliza agendas de pesquisa em Sociologia do Direito há muitos anos e paramos de estudar o Judiciário de maneira rigorosa, partindo do princípio de que a judicialização é uma realidade dada. A judicialização é um argumento que cola com algumas inovações, não todas advindas da Constituição de 1988, mas a Constituição seria a síntese de um novo modelo de Direito e que ao lado tem ideologias, condições histórico-sociais, econômicas etc. Isso com um novo desenho de meios e dispositivos jurídicos a serviço do Judiciário. Estamos falando da possibilidade de Ação Popular, Ação Civil Pública, ampliação de poderes das carreiras jurídicas, o que tornaria a Lava Jato algo bastante tradicional, pois se trata de um processo criminal, sendo tocado por um juiz de primeira instância. Tenho dúvidas em ver a Lava Jato como produto da judicialização.

Claro que ela está em sintonia com uma subida em importância do Poder Judiciário como um todo. O Judiciário, atualmente, pode e faz coisas que não podia. Os juízes vêm reivindicando, cada vez mais, uma amplitude de seus repertórios de ação. A Lava Jato trabalha com dispositivos que são relativamente simples e bastante antigos, como a prisão preventiva, um artifício jurídico antigo, combinado com algo novo, que é a delação premiada. É isso que tem determinado o sucesso da Lava Jato.

Midiatização a serviço dos juízes

Uma coisa é a judicialização da política, outra coisa são os dispositivos mediáticos a serviço dos juízes. A hipermidiatização de um processo criminal não é nova. Podemos lembrar de vários casos que são levados a público porque mobilizam sentimentos morais, a Lava Jato é a mesma coisa, mas com duas diferenças. De um lado ela implica no descumprimento de novos dispositivos — os vazamentos das declarações e das coletivas de imprensa com direito a “power point”. O ponto aqui não é o quanto isso viola direitos e garantias dos denunciados, independentemente de no futuro eles serem considerados inocentes, pois a simples hipótese da constituição da presunção da inocência foi gravemente ferida. O argumento central é que do ponto de vista midiático isso apresenta um dispositivo instrumental da mídia pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público, pois a discrição é a regra fundamental da justiça ocidental moderna, sobretudo em relação a casos que estão sob julgamento e não acabaram. Há um uso estratégico de colaborar com a imprensa simpática à operação.

Um segundo desdobramento diz respeito às consequências políticas da operação. Há a midiatização de processos criminais e isso geralmente se desdobra do ponto de vista legislativo, com o endurecimento da lei penal, embora as consequências políticas da Lava Jato sejam incomparáveis inclusive com o Mensalão. [2] Este último se trata de um processo que começou e terminou no Supremo Tribunal Federal – STF e a Lava Jato ainda está na primeira instância. A midiatização de um processo como esse visa apenas ser o gatilho do impacto político.

IHU On-Line – Em que medida é possível comparar as operações Lava Jato e Mani Pulite (Mãos Limpas) da Itália?

Fernando de Castro Fontainha – É claro que existem comparações possíveis, mas estamos falando de homologias de diferentes operações realizadas pelo Judiciário em combinação com o MP para punir crimes praticados por políticos. Só aí que são comparáveis.

Recomendo a leitura do livro L’institution judiciaire remotivée. Le processus d’institutionnalisation d’une «nouvelle justice» en Italie (1964-2000) (Paris: LGDJ, 2004), tese de doutorado de Antoine Vauchez, cientista político francês, sobre a Operação Mãos limpas, que vai apontar para uma ampliação do repertório de ação da magistratura. A operação na Itália teve pouco impacto na reformulação das elites políticas em longo prazo, cujos efeitos foram bastante mitigados, o que levou à ascensão do Berlusconi. [3] Isto é, mais confundiu que organizou o sistema político, e em termos de corrupção não precisamos falar nada.

No fundo, essa midiatização fragiliza as instituições judiciárias e a legitimidade. As práticas hiperpersecutórias produzem atos que são juridicamente nulos. As medidas de curto prazo — prisão preventiva e prisão provisória — têm efeitos, porém com as revisões pedidas esses atos tendem a ser anulados. Manter no longo prazo pessoas que efetivamente cometeram crimes se torna muito difícil. Vou dar um exemplo da Operação Mãos Limpas de como custa alto sacrificar determinados princípios fundamentais, da persecução penal, com o argumento de reivindicar maior eficiência no processo: como sabemos, na Itália e na França, a magistratura e o MP são um só, inclusive se pode oscilar entre um e outro ao longo da carreira, o que, evidentemente, proíbe que uma mesma pessoa seja promotor e juiz de um mesmo caso, mas isso aconteceu na Mãos Limpas. Isto é, o mesmo indivíduo que denunciou foi o que julgou o caso depois, via transferência interna dentro da carreira, mas isso vai de encontro aos princípios mais básicos da institucionalidade dos julgamentos e dos direitos individuais que nas repúblicas ocidentais modernas todo o acusado tem. Vale lembrar, o princípio da presunção da inocência não é uma exclusividade brasileira.

O Sérgio Moro é dado a comparações infelizes. Em nota à imprensa, quando houve os vazamentos dos áudios dos diálogos entre o Lula [4] e a Dilma, [5] ele fez a comparação com o Nixon, [6] no caso Watergate, [7] sem dizer, no entanto, que o caso não foi aberto porque grampearam o Nixon, mas, justamente, porque foi ele quem grampeou ilegalmente os adversários políticos. O Moro é um personagem fruto de uma instituição que recruta mal, que socializa profissionalmente muito mal e de uma formação jurídica, em geral, que não fornece elementos para fazer comparações históricas e digressões sociológicas que permitam pensar a política de uma maneira um pouco mais pragmática, sem cair em uma visão ideologizada da história e instrumental do que é a sociedade. O Moro é o retrato de muitos juízes brasileiros, mas nem todos concordam com ela. Acredito que a maioria da corporação judiciária e do Ministério Público tem certo receio porque as consequências institucionais para estas corporações serão nefastas, pois demonstram não saber lidar com o enorme poder que têm.

IHU On-Line – Ainda tem o caso da “citação” de Hegel [8] por parte do Ministério Público de São Paulo...

Fernando de Castro Fontainha – Veja, na denúncia apresentada pelo Deltan Dallagnol, tem um capítulo dedicado ao presidencialismo de coalizão que é totalmente deturpado. Isto é, há, nesses casos, um uso deturpado de saberes que eles não dominam, o que denota uma falha de visão multidisciplinar e uma profunda ideologização. Quem só conhece de direito técnico deveria falar apenas de direito técnico. Eu queria provocar a seguinte questão: o que contribui, para o julgamento criminal do Lula, ele ter traído princípios caros à esquerda? Ainda tem o fato da ignorância do cara pensar em Engels [9] e escrever Hegel. Pô, não tinha sequer um estagiário do movimento estudantil para corrigi-lo? Isso mostra uma profunda ignorância de uma literatura básica, porque não é nem na faculdade que se aprende isso. Não sou um entusiasta pessoal do Lula nem do PT, mas isso tudo só demonstra o caráter ideológico e persecutório da denúncia, colocando em xeque a credibilidade do Ministério Público e do Judiciário.

A Operação Lava Jato, que poderia nos dar um raio-X não somente do que aconteceu com a Petrobras, poderia revelar o esquema de cartel antigo e muito bem montado, apresentando uma radiografia que prendesse os culpados e impedisse que isso pudesse acontecer daqui para a frente. No entanto, o que temos visto é que as peças produzidas apontam para uma espécie de condenação ideológica, sendo que o Judiciário deveria ser a última instituição a fazer esse tipo de coisa. Isso de denunciar por convicções é papel dos partidos políticos. A linguagem e o timing da política, para o bem das instituições republicanas, devem ser evitados a todo o custo pelo MP e pelo Judiciário, sob pena deles se colocarem como mais uma instituição atuante nesse mercado, ao invés de imporem limites para os concorrentes do mercado político. Não é papel do MP nem do Judiciário fazer condenação ideológica de qualquer partido político, pois a saúde republicana não depende disso.

IHU On-Line - Em que medida a atuação política de juristas pode representar um risco ao Estado Democrático de Direito e como podemos entender a dimensão pessoal desses profissionais na tarefa de conduzir a justiça?

Fernando de Castro Fontainha – Precisamos, primeiro, pensar o que são as instituições. Todas instituições. O mundo privado é o mundo dos afetos, não entra na minha casa quem eu não quero que entre, quando estou de saco cheio mando embora. Na rua escolho meus amigos. É assim que funciona. Podemos imaginar um médico que não atenda alguém por não gostar dessa pessoa, ou que não atenda negros por ser racista, ou que não atenda mulheres por ser machista, ou que não atenda estrangeiros e imigrantes por ser xenófobo? Não dá para imaginar. Os membros dessas instituições têm o dever profissional de atender quem está precisando, a profissão só existe se o dever funcional for respeitado. Apenas com raras exceções o advogado não atende um cliente, pois ele tem o dever de oferecer assistência técnica para quem quer que seja, é um direito do cidadão e sem esta presunção a profissão de advogado deixa de existir, não faz sentido. A mesma coisa é o trabalho de professor. Eu posso ensinar para os meus filhos o que eu quiser, mas não para os meus alunos.

Essas regras valem para todas instituições e quando falamos de Ministério Público e Judiciário isso vale também, porque temos deveres funcionais. É claro que a justiça não é cega no sentido de que os promotores e juízes não têm preferências, opiniões, cores políticas, preconceitos. Todos eles têm, mas as decisões não podem ser fundamentadas, embasadas, nos seus preconceitos, afetos e desafetos e opiniões pessoais. Para haver legitimação deve haver um esforço de enquadramento propriamente jurídico. Os juízes podem até atuar politicamente e fazem isso o tempo todo, no mundo inteiro; o problema que distingue decisões contestáveis de decisões contestadas é que existem limites tênues para a autonomia relativa da decisão face à política. Se os agentes do Judiciário não seguirem minimamente os constrangimentos fundamentais, como o do princípio do promotor natural para o Ministério Público, imparcialidade para a magistratura, o impacto é a perda da validade e de credibilidade, o que está em vias de acontecer.

Uma parte da magistratura e do MP segue contando com a opinião pública em um consenso antipetista. O problema é que o consenso é muito difícil de ser verificado e a grande imprensa tenta emular esse consenso, que aparece em uma parcela muito pequena do eleitorado. Some-se isso à Lei da Ficha Limpa, [10] o que nós temos, às vésperas das eleições municipais, como cenário prévio às próximas eleições presidenciais, é uma denúncia com vistas à condenação de Lula, em decorrência das investigações da Lava Jato. Uma coisa é o Lula ser enquadrado na Lei da Ficha Limpa com uma situação probatória robusta, com argumentos técnicos, outra coisa é ser enquadrado de forma ideológica. São coisas diferentes e podem levar ao descrédito de duas instituições muito importantes como o Ministério Público e a magistratura. O que esses caras estão fazendo é arriscar a credibilidade das próprias instituições e dos privilégios a quem têm direito.

IHU On-Line – E o Ministério Público parece ter ganhado um novo fôlego pós-constituição...

Fernando de Castro Fontainha – Na verdade o Ministério Público se transformou, tendo os fins ampliados, para fora daquela condição tradicional de acusador oficial da república. Do ponto de vista da persecução criminal, suas competências se ampliaram, perseguindo crimes de maneira mais ampla, e do ponto de vista cível ganharam muitas competências do controle da administração pública, daquilo que se chama de hipossuficiência da proteção de idosos, crianças, consumidores, mulheres, meio ambiente — que é mais difuso porque é impossível de determinar quantos serão os beneficiados. O risco da apropriação das lógicas e do discurso da política profissional é muito grande. O Brasil está sob ameaça de perder duas instituições muito importantes: Judiciário e Ministério Público.

IHU On-Line - Gostaria que o senhor analisasse a ação das elites brasileiras nas instituições jurídicas ao longo do processo de “instalação” da democracia no país. E como essa relação se estabelece nos dias de hoje?

Fernando de Castro Fontainha – Sempre houve muita interação entre elites jurídicas, políticas e econômicas, embora não necessariamente elas componham o mesmo estrato, são pessoas muito diferenciadas. As elites jurídicas sempre foram bastante assessórias das elites políticas e das elites econômicas. Raros são os membros do magistrado e do MP que são filhos de famílias burguesas. Existem alguns quadros que vêm do Direito que conseguem se colocar de uma maneira ambígua e circular entre as elites jurídicas e políticas. Há um ressentimento do período autoritário, o regime militar, que produz o reforço de instituições perenes e controladoras da democracia, como o Judiciário e o MP, ampliado para Controladoria Geral da União – CGU, Advocacia Geral da União – AGU, cuja ação se converte em um verdadeiro controlador da legalidade e não como advogados e consultores jurídicos da administração pública.

A interação sempre presente das elites políticas e jurídicas produziu um lobby muito forte em favor de certas instituições. Mesmo no período de repressão os juristas foram muito mais poupados que os jornalistas, por exemplo. A relação entre as elites políticas e jurídicas, nesses últimos 25 anos, pode ser medida na escalada salarial das corporações, que dependem das relações com o Executivo e, sobretudo, com o Poder Legislativo. A contrapartida é o fato de que políticos precisam de benefícios de curto prazo negociando com alguém que precisa de benefícios de longo prazo, pois se trata de uma relação entre alguém que a cada quatro anos renova o seu mandato e alguém que fará uma carreira de 30 anos. Essas negociações não são simétricas e há poucos estudos sobre isso e sobre o impacto nas decisões judiciais.

A agressividade em direção a privilégios e benefícios, ao contrário do discurso, não fortalece a ideia de que quanto maior o salário menor o risco de corrupção e melhores serão os quadros atraídos. Isso é falacioso, o que acontece de verdade é que esta troca, em última análise, coloca o Judiciário e o Ministério Público mais à mercê do poder Executivo e mais ainda do Legislativo. A cobertura da imprensa cria na sociedade a ilusão de que há uma forte independência do MP e do Judiciário ante os ânimos da política, mas, infelizmente, ela não existe.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Fernando de Castro Fontainha – Esta é uma entrevista jornalística em que me permito misturar um conjunto de pesquisas e reflexões oriundas de minha subárea com as minhas opiniões. Porém, do ponto de vista da Sociologia do Direito, o que isso coloca para nós é uma agenda de pesquisa que até então não vem sendo explorada. Embora a entrevista seja para todos, se eu puder deixar uma última palavra para os que têm interesse em estudar o Judiciário e o Ministério Público, é que essa crise demonstra as dimensões da atuação desses profissionais até então desconhecidas por nós. Além disso, precisamos de um esforço de reconstrução das agendas de pesquisa.

Veja, vivemos um momento em que qualquer cidadão pode ser preso por uma combinação de prisão preventiva e delação premiada e isso é de deixar qualquer um com medo. Mais ainda, se trazemos à baila a teoria do domínio do fato, [11] aí realmente uma pessoa pode ser condenada e publicamente exposta sem ter prova de que praticou um ato criminoso. O que nós estamos falando é da liberdade das pessoas e da reputação delas. Isso é novo? Novo para um pedaço das elites políticas e empresariais, mas na produção do superencarceramento, das prisões arbitrárias e motivadas exclusivamente no depoimento policial, isso é o cotidiano das instituições.

Ainda há o argumento de que a socialização profissional do Judiciário e do Ministério Público em matéria criminal é da prática da prisão arbitrária. Lembro que quando houve críticas ao Moro, o ministério público disse que aquele era o protocolo de atuação, praticamente admitindo que a arbitrariedade é uma regra. A pergunta do Judiciário é: por que está todo mundo indignado agora que estamos fazendo isso com o Lula e com o Marcelo Odebrecht ? Claro, é porque a gente não tem a midiatização da prisão do pequeno traficante em Porto Alegre, no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Isso raramente é midiatizado nos detalhes técnicos. Essas são práticas inquisitoriais e que vão de encontro a princípios constitucionais, que são os que norteiam as repúblicas ocidentais modernas.

Notas: 

[1] Operação Lava Jato: investigação em andamento pela Polícia Federal do Brasil, que deflagrou sua fase ostensiva em 17 de março de 2014, cumprindo mais de cem mandados de busca e apreensão, prisão temporária, prisão preventiva e condução coercitiva, visando apurar um esquema de lavagem de dinheiro suspeito de movimentar mais de R$ 10 bilhões, podendo ser superior a R$ 40 bilhões, dos quais R$ 10 bilhões em propinas. De acordo com investigações e delações recebidas pela força-tarefa da Lava Jato, estão envolvidos os maiores partidos do Brasil, como PP, PT, PMDB e PSDB, além de empresários e políticos de diversos partidos. A secção Notícias do Dia, do sítio do IHU, vem publicando textos e análises sobre os movimentos realizados em cada uma das fases da Operação, que ainda segue em andamento. Confira aqui. (Nota da IHU On-Line)

[2] Ação Penal 470 ou Mensalão: nome dado ao escândalo de corrupção política mediante compra de votos de parlamentares no Congresso Nacional do Brasil, que ocorreu entre 2005 e 2006. (Nota da IHU On-Line)

[3] Silvio Berlusconi (1936): líder político do partido Força Itália, que criou especificamente para sua entrada na vida política. É o proprietário do império midiático italiano Mediaset, além de empresário de comunicações, bancos e entretenimento. É a pessoa mais rica da Itália, segundo a revistas Forbes, e o 37º mais rico do mundo. Foi presidente do Conselho de Ministros (primeiro-ministro da Itália) da Itália entre 1994 e 1995, de 2001 a 2005, entre 2005 e 2006 e de 2008 a 2011. Seus mandatos como primeiro-ministro somam nove anos no total, o que o torna o líder que por mais tempo permaneceu no cargo no pós-guerra, e o terceiro com mais tempo desde a unificação da Itália, atrás de Benito Mussolini e Giovanni Giolitti. Foi acusado inúmeras vezes de corrupção e ligações com a Máfia. Gerou polêmica na Europa ao apoiar a Guerra dos EUA contra o Iraque, em 2003. (Nota da IHU On-Line)

[4] Luiz Inácio Lula da Silva [Lula] (1945): trigésimo quinto presidente da República Federativa do Brasil, cargo que exerceu de 2003 a 1º de janeiro de 2011. É cofundador e presidente de honra do Partido dos Trabalhadores (PT). Em 1990, foi um dos fundadores e organizadores do Foro de São Paulo, que congrega parte dos movimentos políticos de esquerda da América Latina e do Caribe. Foi candidato a presidente cinco vezes: em 1989 (perdeu para Fernando Collor de Mello), em 1994 (perdeu para Fernando Henrique Cardoso) e em 1998 (novamente perdeu para Fernando Henrique Cardoso), e ganhou as eleições de 2002 (derrotando José Serra) e de 2006 (derrotando Geraldo Alckmin). Lula bateu um recorde histórico de popularidade durante seu mandato, conforme medido pelo Datafolha. Programas sociais como o Bolsa Família e Fome Zero são marcas de seu governo, programa este que teve seu reconhecimento por parte da Organização das Nações Unidas como um país que saiu do mapa da fome. Lula teve um papel de destaque na evolução recente das relações internacionais, incluindo o programa nuclear do Irã e do aquecimento global. (Nota da IHU On-Line)

[5] Dilma Rousseff (1947): economista e política brasileira, filiada ao Partido dos Trabalhadores-PT, presidente do Brasil de 2011 (primeiro mandato) até 31 de agosto de 2016 (segundo ano de seu segundo mandato). Em 12 de maio de 2016, foi afastada de seu cargo durante o processo de impeachment que fora movido contra ela. No dia 31 de agosto o Senado Federal, por votação de 61 votos favoráveis ao impeachment contra 20, afastou Dilma definitivamente do cargo. O episódio do impeachment foi amplamente debatido nas Notícias do Dia no sítio do IHU, como, por exemplo, a Entrevista do Dia com Rudá Ricci 'Os pacotes do Temer alimentarão a esquerda brasileira e ela voltará ao poder'. Durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, assumiu a chefia do Ministério de Minas e Energia e posteriormente da Casa Civil. Em 2010, foi escolhida pelo PT para concorrer à eleição presidencial. (Nota da IHU On-Line)

[6] Richard Milhous Nixon (1913-1994): 37º presidente dos Estados Unidos (1969-1974) e o único presidente norte-americano a renunciar ao mandato. Ele foi também representante e senador pelo estado da Califórnia e 36.º vice-presidente de seu país, durante o governo de Dwight Eisenhower. Renunciou em 9 de agosto de 1974, em virtude do escândalo Watergate, pouco antes da votação pelo Congresso da cassação de seu mandato - o impeachment. O trauma político causado pelo episódio foi grande (tanto que os americanos acabariam por escolher na eleição seguinte Jimmy Carter, um candidato religioso e apegado a valores morais). Nixon só retornaria à vida pública americana 20 anos depois do fiasco de Watergate. (Nota da IHU On-Line)

[7] Caso Watergate: escândalo político de 1970 nos Estados Unidos que, ao vir à tona, levou a renúncia do presidente Richard Nixon, do Partido Republicano. Durante a campanha eleitoral, cinco pessoas foram detidas quando tentavam fotografar documentos e instalar aparelhos de escuta no escritório do Partido Democrata. O escândalo se deu quando o jornal Washington Post publicou que Nixon sabia de tudo. (Nota da IHU On-Line)

[8] Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo alemão idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, desenvolveu um sistema filosófico no qual estivessem integradas todas as contribuições de seus principais predecessores. Sobre Hegel, confira  a edição 217 da IHU On-Line, de 30-04-2007, intitulada Fenomenologia do espírito, de (1807-2007), em comemoração aos 200 anos de lançamento dessa obra. Veja ainda a edição 261, de 09-06-2008, Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler Hegel; Hegel. A tradução da história pela razão, edição 430 e Hegel. Lógica e Metafísica, edição 482. (Nota da IHU On-Line)

[9] Friedrich Engels (1820-1895): filósofo alemão que, junto com Karl Marx, fundou o chamado socialismo científico ou comunismo. Ele foi coautor de diversas obras com Marx, e entre as mais conhecidas destacam-se o Manifesto Comunista e O Capital. Grande companheiro intelectual de Karl Marx, escreveu livros de profunda análise social. (Nota da IHU On-Line)

[10] Lei da Ficha Limpa: é a Lei Complementar nº 135 de 2010 que foi emendada à Lei das Condições de Inelegibilidade ou Lei Complementar nº 64 de 1990, originada de um projeto de lei de iniciativa popular idealizado pelo juiz Márlon Reis, entre outros juristas. A legislação se tornou realidade a partir da coleta de 1,6 milhão de assinaturas apoiando a iniciativa. A Lei da Ficha Limpa torna inelegível por oito anos um candidato que tiver o mandato cassado, renunciar para evitar a cassação ou for condenado por decisão de órgão colegiado, mesmo que ainda exista a possibilidade de recursos. (Nota da IHU On-Line)

[11] Teoria do domínio do fato: a teoria do domínio do fato foi criada por Hans Welzel em 1939, e desenvolvida pelo jurista Claus Roxin, em sua obra Täterschaft und Tatherrschaft de 1963. A tese sustenta que o é autor - e não mero partícipe - a pessoa que, mesmo não tendo praticado diretamente uma dada infração penal, decidiu e ordenou sua prática a subordinado seu, o qual foi o agente que diretamente a praticou em obediência ao primeiro. (Nota da IHU On-Line)

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