O direito de ir e vir cerceado: migração para as cidades expõe indígenas ao preconceito e à violência secular. Entrevista especial com Azelene Kaingáng

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22 Janeiro 2016

“Uma criança indígena teve que ser assassinada de forma brutal, como foi o Vitor, para que pudéssemos fazer com que as autoridades parassem e conversassem conosco sobre como esses indígenas são recebidos quando chegam ao espaço urbano”, alerta a socióloga indígena.

Foto: www.revistasina.com.br
No penúltimo dia de 2015 o menino Kaingáng Vitor Pinto foi assassinado, aos dois anos de idade, enquanto era amamentado pela mãe. O crime que aconteceu no dia 30 de dezembro na Rodoviária de Imbituba, Santa Catarina, marcou o encerramento do ano pela violência contra a vida de uma criança indefesa, mas também trouxe à tona as violências cometidas contra os povos indígenas no Brasil desde 1500, nos levando de volta ao século XV.

Também não mudaram o choque cultural e o preconceito quanto aos índios, os quais agora são vistos como intrusos em um país que sempre foi deles. Hoje vivem em situação de extrema pobreza e o meio que encontram para sobreviver é vender artesanato, fruto de sua cultura, nas cidades.

Conforme ressalta na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, a socióloga indígena e servidora da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, Azelene Kaingáng, “esse acontecimento trágico reafirma a necessidade de debatermos sobre essa migração, ainda que temporária, das famílias indígenas para as cidades. Principalmente em época de temporada de veraneio, tal migração se dá de uma forma muito mais intensa. Os indígenas do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul costumam migrar por 60 e até 90 dias, muitas vezes, ficando expostos a diversos riscos”.

De acordo com a socióloga, são insuficientes os investimentos direcionados aos povos indígenas no país. “Na verdade somos muito carentes de políticas públicas dentro das comunidades indígenas e a tendência é piorar cada vez mais. Os recursos estão diminuindo progressivamente e o orçamento da União não contempla realmente a questão indígena da forma que deveria. O Brasil se diz multiétnico e pluricultural em fóruns onde isso é muito aplaudido, no entanto, são pouquíssimas as políticas que de fato refletem e dialogam com essa diversidade, entre elas a dos povos indígenas, que sobrevivem como podem nesse contexto de escassez”, ressalta.

Para a indígena e socióloga, que através de seu trabalho na FUNAI acompanha de perto a situação desses povos, a herança cultural e o modo de viver das diversas etnias indígenas presentes no país devem ser respeitados, porém as circunstâncias em que vivem atualmente, em territórios reduzidos e com poucos meios de sobrevivência, também têm que ser consideradas na formulação de políticas públicas para esses grupos. “Não adianta as pessoas quererem nos deixar em uma redoma, como animais de zoológico, se precisamos nos alimentar, sobreviver e buscar sustento para os nossos filhos. Precisamos produzir e para que isso seja possível são necessários projetos e programas que gerem produção alimentar e o desenvolvimento das comunidades indígenas para que elas possam sair dessa situação de extrema pobreza”, aponta.

Azelene Kaingáng nasceu na terra indígena Carreteiro, no Rio Grande do Sul, é graduada em Sociologia pela Universidade Católica do Paraná – PUC - PR, e mestre em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais pela Universidade de Chapecó – Unochapecó - SC. Desde 1994, é servidora da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, onde é coordenadora geral de Defesa dos Direitos Indígenas. Também é fundadora e membro da Comissão Nacional das Mulheres Indígenas e do Warã Instituto Indígena Brasileiro. Em 2006, ganhou o Prêmio Nacional dos Direitos Humanos da Presidência da República e, em 2010, recebeu a Comenda da Ordem do Mérito Cultural, por sua luta pelos direitos dos índios brasileiros.

Confira a entrevista.

Azelene Kaingáng
Foto:www.unochapeco.edu.br 
IHU On-Line – O que o assassinato do menino indígena Vitor pode revelar sobre como os indígenas são vistos e tratados pelo Brasil?

Azelene Kaingáng – O assassinato do Vitor nos faz acordar para uma realidade que as autoridades têm muita resistência em tratar, que é essa migração temporária dos indígenas para as cidades para a comercialização de artesanato ou outros afazeres. Então, se desperta para uma questão que precisa ser discutida e ser dada a importância que ela merece, pois temos encontrado muita dificuldade de fazer esse diálogo com as autoridades.

As pessoas ainda têm muito preconceito quanto à presença de indígenas nas cidades e essa morte traz à tona essa questão. Uma criança indígena teve que ser assassinada de forma brutal, como foi o Vitor, para que pudéssemos fazer com que as autoridades parassem e conversassem conosco sobre como esses indígenas são recebidos quando chegam ao espaço urbano. Geralmente, quando eles chegam à cidade, logo recebemos uma série de ligações telefônicas nos avisando que há índios nas praças, ou embaixo de viadutos. Isso não acontece com qualquer outro grupo que esteja acampado, ou com pessoas em situação de rua nesses lugares. Aí se revela o preconceito.

Assim, esse acontecimento trágico reafirma a necessidade de debatermos sobre essa migração, ainda que temporária, das famílias indígenas para as cidades. Principalmente em época de temporada de veraneio, essa migração se dá de uma forma muito mais intensa. Os indígenas do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul costumam fazer essa migração por 60 e até 90 dias muitas vezes, ficando expostos a diversos riscos.

Como indígena e militante dos direitos indígenas, eu espero que pelo menos essa morte sirva para despertar as autoridades porque não é possível continuar essa situação, pois o tipo de violência que os indígenas sofrem cotidianamente, quando precisam acessar o ambiente urbano, é inacreditável.

IHU On-Line – Como está o caso do assassinato do menino Vitor? Houve algum encaminhamento? Foi dado algum apoio à família?

Azelene Kaingáng – Sim, foi dado todo apoio à família. No dia do assassinato gestores da Fundação Nacional do Índio - FUNAI foram acompanhar de perto o caso, também conduziram o processo de liberação e traslado do corpo do menino, pois os pais não tinham condições de fazer isso, estavam muito abalados. A família continua sendo assistida com atendimento médico, fornecimento de cestas básicas, enfim, o que eles têm precisado para que consigam, pelo menos neste primeiro momento, ter forças até para contribuir com as investigações. O caso ainda está com a polícia de Imbituba – SC, que está coletando provas e depoimentos, e depois será enviado para o Judiciário.

Já temos a informação triste de que foi um crime premeditado, rigorosamente pensado. Vimos os vídeos gravados pelas câmeras de segurança da rodoviária, que estão exibidos nas redes sociais e também estão sendo usados pela polícia, antes desse material ser divulgado na mídia, e ainda tivemos acesso ao depoimento do acusado. Também, eu acompanhei pessoalmente os pais da criança deporem porque eu falo Kaingáng e eles falam português ainda com certa dificuldade. Queríamos ter certeza de que aquilo que eles falassem fosse integralmente colocado no depoimento prestado.

Está posto e revelado que foi um crime com objetivos torpes. Também verificamos o histórico do assassino, que é uma pessoa problemática, que já tentou tirar a vida dos pais, que adora a ritos satânicos.

“As pessoas ainda têm muito preconceito quanto à presença de indígenas nas cidades

  

 

Assim, é lamentável que uma pessoa com esse comportamento possa vir a ficar solta, porque ela não é uma ameaça só para os índios, ela ameaça a toda a sociedade. Esperamos realmente que a justiça seja feita com rigor.

Esse rapaz que assassinou Vitor, neste momento, está em prisão temporária, mas a polícia está tentando convertê-la em prisão preventiva, que tem um período mais longo. Então ele está preso, confessou o crime e alegou que o cometeu por motivos religiosos, se é que se pode enquadrar como religiosos os motivos dados, pois disse que matou a criança porque queria provocar uma grande comoção e receber notoriedade. Assim, é possível perceber que uma pessoa com esse tipo de comportamento não pode ficar livre.

IHU On-Line – De que forma a sra. avalia a decisão da polícia em desconsiderar o assassinato como um crime étnico? Como a família e a comunidade indígena entendem essa questão?

Azelene Kaingáng – Está claro para todo mundo que um crime como esse é um atentado contra vida, mas não deixa de ter esse viés étnico. Digo isso porque no vídeo fica claro que havia uma outra criança não-indígena brincando na rodoviária e o criminoso passa quase por cima desta criança e escolhe justamente a criança indígena para matar. Se não havia essa questão étnica, por que esse homem fez isso? Por que se dirigiu diretamente à criança indígena? Assim, vejo uma motivação racial, preconceituosa que comprova que o Vitor foi morto também porque era uma criança indígena. Se não fosse assim, o criminoso teria matado qualquer outra criança que estivesse no terminal rodoviário.

Os pais da criança e a comunidade indígena da qual essa família faz parte acreditam que o assassinato de Vitor foi uma tentativa de espantá-los das cidades. A maioria desse grupo migra para as cidades para comercializar o artesanato que produz e tem claro que a população urbana não gosta da presença indígena nesse espaço.

IHU On-Line – Que tipo de políticas públicas poderia garantir a segurança às populações indígenas que precisam se sustentar da venda do artesanato?

Azelene Kaingáng – Na verdade somos muito carentes de políticas públicas dentro das comunidades indígenas e a tendência é piorar cada vez mais. Os recursos estão diminuindo progressivamente e o orçamento da União não contempla realmente a questão indígena da forma que deveria. O Brasil se diz multiétnico e pluricultural em fóruns onde isso é muito aplaudido, no entanto, são pouquíssimas as políticas que de fato refletem e dialogam com essa diversidade, entre elas a dos povos indígenas, que sobrevivem como podem nesse contexto de escassez.

A venda de artesanato não é um hobby e antes de ser um direito é algo necessário para a subsistência dos indígenas. Eles têm o direito de ir e vir e de vender seus produtos, mas com certeza se não tivessem a necessidade de fazer isso, optariam por não se expor aos riscos da cidade, como ter um filho assassinado, ou ser espancado nas ruas, como aconteceu com um indígena recentemente em Belo Horizonte – MG. Os índios vão para as cidades vender o artesanato porque precisam de uma renda para sustentar os filhos e a família, e as terras indígenas estão muito carentes de programas, projetos e políticas que propiciem a sustentabilidade com dignidade para as comunidades.

Os governos estaduais acham que as comunidades indígenas não são responsabilidade deles, muito menos as prefeituras. Equivocadamente as autoridades pensam que se trata de uma incumbência apenas do governo federal, o que é um grande erro, porque a questão indígena é uma responsabilidade de todo o Estado brasileiro, que compreende as instâncias dos governos dos Estados, dos municípios e, é claro, do país.

A chegada dos indígenas nas cidades poderia ser vista com mais atenção pelas autoridades. Precisaria haver um lugar onde eles pudessem chegar com a família em segurança e onde também fosse possível deixarem as crianças enquanto eles estão nas ruas comercializando o artesanato. Uma coisa é certa, eles não vão deixar de levar os filhos junto nessa migração, porque nós indígenas somos assim. Quando saímos levamos os filhos, os nossos idosos, enfim, toda a família, e isso não vai deixar de acontecer. Então, o que tem que ser pensado é de que forma as cidades deveriam receber esses grupos.

IHU On-Line – Entre as etnias indígenas presentes no Brasil, qual é a situação do povo Kaingáng?

Azelene Kaingáng – Nós somos hoje em torno de 40 mil pessoas de origem Kaingáng e a situação dos indígenas na região Sul, incluindo os Guarani e os Xetá, é de extrema pobreza. Nossos territórios são muito reduzidos, posso dizer que eles representam o fundo do quintal dos territórios indígenas da Amazônia. São áreas super pequenas, espremidas entre propriedades rurais e cidades, onde a disputa territorial é acirradíssima. Além disso, não existem políticas de produção alimentar. A nossa alimentação e economia são baseadas no plantio de grãos e não mais na coleta e na pesca, pois não há mais o que coletar e nem pescar, uma vez que as águas já estão contaminadas, alguns rios já secaram, não há mais florestas e matas.

Diante desse contexto, a situação do povo Kaingáng, que é a terceira etnia indígena mais numerosa do país, chegou à extrema pobreza, sobrevivendo do fornecimento de pouquíssimas cestas básicas distribuídas pela Companhia Nacional de Abastecimento - CONAB, da inserção de alguns indígenas em programas sociais do governo, como o Bolsa Família, e ainda da aposentadoria que às vezes se consegue para os mais velhos. Dentre essas formas de buscar sustento, está a comercialização de artesanato.

IHU On-Line – Como está a situação dos indígenas especificamente na região Sul, local onde ocorreu o assassinato? Houve algum progresso na demarcação de terras na região?

  

“Não adianta as pessoas quererem nos deixar em uma redoma, como animais de zoológico, se precisamos sobreviver e buscar sustento para nossos filhos

Azelene Kaingáng – Não houve avanços na demarcação de terras. Essa é uma questão muito polêmica, pois quase todos os processos de demarcação de terras, incluindo os da região Sul, estão judicializados. Conforme eu mencionei antes, é uma disputa acirradíssima com agricultores, pequenos produtores etc. Nós já perdemos diversos processos em função disso.

Então, nada mudou. A gente espera que as autoridades se sensibilizem com esse crime, que nós não vamos deixar cair no esquecimento, para que as questões relacionadas aos direitos indígenas evoluam de alguma forma.

IHU On-Line - Quais são as pautas mais urgentes da questão indígena que devem entrar em debate neste ano?

Azelene Kaingáng – Diversos temas devem entrar em debate, mas o destaque será a Proposta de Emenda Constitucional número 215. A PEC 215 foi proposta principalmente por grupos ligados aos agricultores, eu particularmente como técnica indigenista discordo muito do texto desta proposta e lamentavelmente acho que ela será aprovada. Infelizmente não temos parlamentares indígenas no Brasil, então defendo que nós devemos dialogar com a comissão especial que está à frente desse processo para buscarmos minimizar os impactos para os direitos indígenas, as perdas que poderemos ter com a aprovação dessa PEC e tentarmos sensibilizar os políticos para que eles também olhem para os direitos desses povos.

Nós sabemos que os agricultores também têm direitos e eu enquanto militante dos Direitos Humanos reconheço isso. Os direitos dos agricultores são tão importantes quanto os dos povos indígenas, mas é interessante termos em vista que um direito não inviabiliza o outro. Acho que o desafio é justamente proporcionar uma convivência pacífica entre indígenas e agricultores.

Falando especificamente da região Sul, sabemos que já houve mortes por conta da disputa territorial. Então, me preocupa ainda mais a Proposta de Emenda Constitucional número 215. O texto é bastante prejudicial e precisamos dialogar no sentido de modificá-lo para minimizar as perdas para os indígenas e assegurar também os direitos dos agricultores.

Outra questão que também deve ser debatida em 2016 é a violência contra os povos indígenas, pois estamos vivendo uma onda assustadora de hostilidade. Um cacique relatou que tem sentido medo de sair na rua porque percebe que, quando é identificado como indígena, é discriminado e até xingado só pelo fato de ser indígena. Tivemos o assassinato de Vitor e o de outro indígena que foi espancado até a morte em Belo Horizonte, além de tantos outros casos que não são divulgados pela mídia. Por isso, certamente a violência será uma questão muito discutida nesse ano que se inicia.

Nós os Kaingáng, e também as demais etnias presentes na Região Sul, temos uma grande expectativa sobre como ficará a nossa sobrevivência e o desenvolvimento das comunidades indígenas. É extremamente necessário que as autoridades e instituições pensem uma forma de desenvolvimento econômico para os grupos da região Sul. Temos terras pequenas e precisamos produzir comida, então temos que usar tecnologia. Não adianta as pessoas quererem nos deixar em uma redoma, como animais de zoológico, se precisamos nos alimentar, sobreviver e buscar sustento para os nossos filhos. Precisamos produzir e para que isso seja possível são necessários projetos e programas que gerem produção alimentar e o desenvolvimento das comunidades para que elas possam sair dessa situação de extrema pobreza.

(Por Leslie Chaves)

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O direito de ir e vir cerceado: migração para as cidades expõe indígenas ao preconceito e à violência secular. Entrevista especial com Azelene Kaingáng - Instituto Humanitas Unisinos - IHU